terça-feira, 6 de setembro de 2016

A Mancha Humana. Philip Roth. «… já passara na Athena quase toda a sua vida académica, mostrando-se um extrovertido, arguto e energicamente afável sedutor de cidade grande, com um pouco de guerreiro, um pouco de manipulador…»

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«(…) Ao contrário da fatwa de Khomeini que condenou Salman Rushdie à morte, o desejo ardente de Buckley pelo castigo correctivo da castração não era acompanhado de nenhum incentivo financeiro para qualquer provável perpectrador. Inspirava-o, no entanto, um espírito não menos implacável do que o do aiatola e era reclamado em nome de ideais não menos exaltados. Foi o Verão da América em que a náusea regressou, em que as chalaças não pararam, em que a especulação, a teorização e a hipérbole não pararam, em que a obrigação moral de explicar aos filhos a vida adulta foi revogada pela vontade de lhes conservar todas as ilusões a respeito da vida adulta, em que a pequenez das pessoas era simplesmente esmagadora, em que um demónio qualquer fora largado à solta na nação e, em ambos os lados, as pessoas perguntavam: por que somos tão loucos?, em que tanto homens como mulheres, ao acordarem de manhã, descobriam que durante a noite, num estado de sono que os transportava para além de toda a repugnância, tinham sonhado com a impudência de Clinton. Eu próprio sonhei com uma bandeira gigantesca, disposta em estilo dadaísta, como um embrulho de Christo, de um extremo ao outro da Casa Branca, com a legenda: vive aqui um ser humano. Foi o verão em que, pela milésima milionésima vez, a bagunça, o caos e a confusão demonstraram ser mais subtis do que a ideologia deste e a moralidade daquele. Foi o verão em que o pénis de um presidente esteve na cabeça de toda a gente e a vida, em toda a sua despudorada obscenidade, confundiu uma vez mais a América.
Às veres, ao sábado, Coleman Silk telefonava e convidava-me a meter-me no carro e ir do meu lado da montanha a sua casa, depois do jantar, para ouvir música, ou jogar, a um cêntimo por ponto, um pouco de gin rummy, ou sentar-me um par de horas na sua sala e bebericar um pouco de conhaque e ajudá-lo a passar a que era sempre a sua pior noite da semana. No verão de 1998 já ele ali estava sozinho, sozinho na grande e velha casa branca revestida de tábuas sobrepostas onde criara quatro filhos com a sua mulher, Iris, havia quase dois anos, desde que Iris tivera um acidente vascular e morrera de um dia para o outro, enquanto Coleman estava em pleno combate com a universidade por causa de uma acusação de racismo que lhe fora feita por duas estudantes de uma das suas turmas. Nessa altura, já passara na Athena quase toda a sua vida académica, mostrando-se um extrovertido, arguto e energicamente afável sedutor de cidade grande, com um pouco de guerreiro, um pouco de manipulador e quase nada do prototípico professor pedante de Latim e Grego (como atesta o Clube Coloquial de Grego e Latim que criou, hereticamente, quando jovem professor auxiliar). O seu eminente curso panorâmico de literatura antiga grega traduzida, conhecido por DHM: Deuses, Heróis e Mito, era popular entre os estudantes precisamente graças a tudo quanto havia de claro, franco e não academicamente enérgico no comportamento dele. Sabem como começou a literatura europeia?, perguntava, após ter feito a chamada na primeira aula. Com uma discussão. Toda a literatura europeia nasce de uma briga.
Depois pegava no seu exemplar da Ilíada e lia aos estudantes os versos da introdução. Canta ó deusa, a cólera de Aquiles [...] mortífera [...] desde o momento em que primeiro se desentenderam o Atrida (Agamémnon), soberano dos homens, e o divino Aquiles. E acerca de que discutem essas duas violentas e poderosas criaturas? De uma coisa tão primitiva como uma rixa de taberna. Discutem por causa de uma mulher. Uma rapariga, na verdade. Uma rapariga roubada ao seu pai. Uma rapariga raptada numa guerra. Ora, Agamémnon prefere muito esta rapariga à sua mulher, Clitemnestra. Prefiro-a a Clitemnestra, minha esposa legítima, pois em nada lhe é inferior, nem de corpo, nem de estatura. Isso revela claramente por que não quer abrir mão dela, não é verdade? Quando Aquiles exige que Agamémnon devolva a rapariga ao pai a fim de apaziguar Apolo, o deus que está furiosamente zangado devido às circunstâncias que rodearam o rapto, Agamémnon recusa: só anuirá se Aquiles lhe der a rapariga dele em troca. Voltando assim a inflamar Aquiles. O adrenalínico Aquiles, o mais altamente inflamável dos explosivos homens violentos que escritor algum jamais teve o prazer de retratar, sobretudo quando estão em causa o seu prestígio e o seu apetite; a máquina de matar mais hipersensível da história da guerra. O famoso Aquiles: afastado e antagonizado por uma afronta à sua honra. Grande e heróico Aquiles que, pela força da sua cólera perante um insulto, o insulto de não conseguir a rapariga, se isola e coloca desafiadoramente à margem da própria sociedade da qual é o glorioso protector e que tão enormemente precisa dele. Uma desavença, portanto, uma desavença brutal por causa de uma jovem e do seu jovem corpo, das delícias da capacidade sexual: é aí, para o bem ou para o mal, é nessa afronta ao direito fálico, à dignidade fálica de um possante príncipe guerreiro, que começa a grande literatura imaginativa da Europa, e é por isso que, quase três mil anos depois, é por aí que hoje vamos começar...» In Philip Roth, A Mancha Humana, 2000, Publicações dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-206-034-9.

Cortesia de PdQuixote/JDACT