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Ao contrário da fatwa de
Khomeini que condenou Salman Rushdie à morte, o desejo ardente de Buckley pelo
castigo correctivo da castração não era acompanhado de nenhum incentivo
financeiro para qualquer provável perpectrador. Inspirava-o, no entanto, um
espírito não menos implacável do que o do aiatola e era reclamado em nome de
ideais não menos exaltados. Foi o Verão da América em que a náusea regressou,
em que as chalaças não pararam, em que a especulação, a teorização e a hipérbole
não pararam, em que a obrigação moral de explicar aos filhos a vida adulta foi
revogada pela vontade de lhes conservar todas as ilusões a respeito da vida
adulta, em que a pequenez das pessoas era simplesmente esmagadora, em que um
demónio qualquer fora largado à solta na nação e, em ambos os lados, as pessoas
perguntavam: por que somos tão loucos?, em que tanto homens como mulheres, ao
acordarem de manhã, descobriam que durante a noite, num estado de sono que os
transportava para além de toda a repugnância, tinham sonhado com a impudência
de Clinton. Eu próprio sonhei com uma bandeira gigantesca, disposta em estilo
dadaísta, como um embrulho de Christo, de um extremo ao outro da Casa Branca,
com a legenda: vive aqui um ser humano. Foi o verão em que, pela
milésima milionésima vez, a bagunça, o caos e a confusão demonstraram ser mais
subtis do que a ideologia deste e a moralidade daquele. Foi o verão em que o
pénis de um presidente esteve na cabeça de toda a gente e a vida, em toda a sua
despudorada obscenidade, confundiu uma vez mais a América.
Às
veres, ao sábado, Coleman Silk telefonava e convidava-me a meter-me no carro e
ir do meu lado da montanha a sua casa, depois do jantar, para ouvir música, ou
jogar, a um cêntimo por ponto, um pouco de
gin rummy, ou sentar-me um par de horas na sua sala e bebericar um
pouco de conhaque e ajudá-lo a passar a que era sempre a sua pior noite da
semana. No verão de 1998 já ele ali estava sozinho, sozinho na grande e velha
casa branca revestida de tábuas sobrepostas onde criara quatro filhos com a sua
mulher, Iris, havia quase dois anos, desde que Iris tivera um acidente vascular
e morrera de um dia para o outro, enquanto Coleman estava em pleno combate com
a universidade por causa de uma acusação de racismo que lhe fora feita por duas
estudantes de uma das suas turmas. Nessa altura, já passara na Athena quase
toda a sua vida académica, mostrando-se um extrovertido, arguto e energicamente
afável sedutor de cidade grande, com um pouco de guerreiro, um pouco de
manipulador e quase nada do prototípico professor pedante de Latim e Grego
(como atesta o Clube Coloquial de Grego e Latim que criou, hereticamente,
quando jovem professor auxiliar). O seu eminente curso panorâmico de literatura
antiga grega traduzida, conhecido por DHM: Deuses, Heróis e Mito, era popular
entre os estudantes precisamente graças a tudo quanto havia de claro, franco e
não academicamente enérgico no comportamento dele. Sabem como começou a
literatura europeia?, perguntava, após ter feito a chamada na primeira aula. Com
uma discussão. Toda a literatura europeia nasce de uma briga.
Depois
pegava no seu exemplar da Ilíada
e lia aos estudantes os versos da introdução. Canta ó deusa, a cólera de
Aquiles [...] mortífera [...] desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida (Agamémnon), soberano dos homens, e o divino Aquiles. E acerca de que
discutem essas duas violentas e poderosas criaturas? De uma coisa tão primitiva
como uma rixa de taberna. Discutem por causa de uma mulher. Uma rapariga, na verdade.
Uma rapariga roubada ao seu pai. Uma rapariga raptada numa guerra. Ora,
Agamémnon prefere muito esta rapariga à sua mulher, Clitemnestra. Prefiro-a a
Clitemnestra, minha esposa legítima, pois em nada lhe é inferior, nem de corpo,
nem de estatura. Isso revela claramente por que não quer abrir mão dela, não é
verdade? Quando Aquiles exige que Agamémnon devolva a rapariga ao pai a fim de
apaziguar Apolo, o deus que está furiosamente zangado devido às circunstâncias
que rodearam o rapto, Agamémnon recusa: só anuirá se Aquiles lhe der a rapariga
dele em troca. Voltando assim
a inflamar Aquiles. O adrenalínico Aquiles, o mais altamente inflamável dos explosivos
homens violentos que escritor algum jamais teve o prazer de retratar, sobretudo
quando estão em causa o seu prestígio e o seu apetite; a máquina de matar mais
hipersensível da história da guerra. O famoso Aquiles: afastado e antagonizado
por uma afronta à sua honra. Grande e heróico Aquiles que, pela força da sua
cólera perante um insulto, o insulto de não conseguir a rapariga, se isola e
coloca desafiadoramente à margem da própria sociedade da qual é o glorioso
protector e que tão enormemente precisa dele. Uma desavença, portanto, uma
desavença brutal por causa de uma jovem e do seu jovem corpo, das delícias da capacidade
sexual: é aí, para o bem ou para o mal, é nessa afronta ao direito fálico, à
dignidade fálica de um possante príncipe guerreiro, que começa a grande
literatura imaginativa da Europa, e é por isso que, quase três mil anos depois,
é por aí que hoje vamos começar...» In Philip Roth, A Mancha Humana, 2000,
Publicações dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-206-034-9.
Cortesia
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