terça-feira, 6 de setembro de 2016

O Papa Negro. Ernesto Mezzabota. «Sim, irmãos, prosseguiu o ancião com irresistível autoridade, as duas potências, que oprimiam a nossa ordem, o papado e a monarquia, estão em vésperas da sua queda»

Cortesia de wikipedia

A assembleia dos templários
«(…) O nomeador, espécie de secretário que tinha os registos, principiou a chamada: barão de Beaumanoir! Presente!..., respondeu o ancião, que presidia à assembleia, erguendo-se. O nome de Beaumanoir, ilustre entre todos na história dos Templários e na da França, era altiva e nobremente usado pelo célebre guerreiro, cuja reputação era imensa nos exércitos franceses. Percy de Sussex!..., prosseguiu o nomeador. O conde britânico levantou-se, e todos admiraram a sua estatura gigantesca e a altivez da sua fisionomia leal. Pedro Calderon!... Francisco Burlamacchi! Ulrico Zuinglio! Guarniero de Hatzing! Todos respondiam à chamada, à medida que iam sendo pronunciados os nomes. Aqueles representantes das diversas nações da Europa apresentavam nas fisionomias a diferença que havia nas suas origens. Assim, a barba farta e áspera de Calderon, o seu rosto anguloso e ossudo, contrastavam com o rosto quase infantil e cheio de indizível doçura de Francisco Burlamacchi; e Zuinglio, o reformador suíço, que mais tarde devia sucumbir na batalha contra os católicos, homem de aspecto severo, pálido, de poucas palavras estava em absoluta oposição com o barão de Hatzing, cujas face rosadas e cabelos louros davam imediatamente a conhecer um saxão, ainda ao observador menos perspicaz. Inácio de Loiola!..., chamou, por último, o nomeador. Presente!, respondeu com voz solene o peregrino, que fora o último a chegar.
Os seis chefes voltaram então o olhar para o lado daquele seu companheiro, e parece que só então repararam que ele era o único que se apresentava com as vestes andrajosas no meio daquela fúlgida reunião, em que todos estavam com as suas brilhantes armaduras. Irmão, disse Beaumanoir, com acento de afectuosa deferência, irmão, o teu disfarce, agora que estás connosco, já de nada serve. Desde o dia em que nos deixaste, faz agora três anos, que nós conservamos com reverente afecto a esplêndida armadura, que para ti foi cinzelada pelo melhor artista de Toledo. Irmãos escudeiros, trazei a armadura, e vesti-a ao senhor de Loiola. Dois dos irmãos levantaram-se e iam a encaminhar-se para uma das portas da sala, quando Inácio os deteve com um gesto, dizendo: é inútil. Estes andrajos, que trago vestidos, já não são indícios de pobreza; mas um voto, que fiz, me obriga a trazê-los. Apesar disso, irmão Loiola… Apesar disso, irmão Beaumanoir, os estatutos da nossa ordem conferem a qualquer irmão o direito de se vincular por qualquer voto, contanto que este não seja contrário ao fim supremo da associação. O tom em que Loiola pronunciara aquelas palavras era tal que não se podia insistir, a menos que não se quisesse entrar em questão com o estranho Templário; por isso, Beaumanoir fez um sinal e o nomeador continuou a chamada.
Debaixo daquelas abóbodas ressoaram então os nomes mais ilustres da Europa, já pela nobreza de sangue, já pelo alto valor nas artes, nas ciências, nas armas e no governo. Estava ali um senado capaz de reger o mundo inteiro sem custo algum! Um senado do qual um dos chefes era Inácio de Loiola, o génio mais potente de organização, que aparecera no mundo antes de Bonaparte. Terminada aquela operação preliminar da chamada, Beaumanoir levantou-se outra vez. Irmãos, disse ele, mais de duzentas vezes nos temos aqui encontrado juntos, nesta reunião anual, desde que os dois malditos, o papa Clemente Sexto e o rei Filipe o Belo, dispersaram os nossos irmãos e tentaram destruir a nossa ordem. Eu, pela minha parte, já umas quarenta vezes tomei lugar nestas reuniões, porque há quarenta anos que pertenço a esta associação, para a qual entrei por morte de meu pai. Todos os que tomavam parte no conselho, no dia em que recebi a medalha de simples cavaleiro, já hoje são mortos; só eu ainda vivo, e sou o mais velho desta assembleia, da qual então era o mais novo.
Senhores, todos vós sois valorosos e fortes; mas aqueles que ao meu lado se sentaram no banco dos chefes, aqueles que partilharam comigo as esperanças e as agonias de quarenta ano: de luta, eram igualmente valorosos e grandes, e o trabalho dele: não foi infrutífero para a nossa ordem. Havia entre eles muito ilustres! E o ancião deixou descair a cabeça para o peito, oprimido por uma recordação dolorosa. Bem depressa, porém, a ergueu, percorrendo com um olhar cintilante de vigor e energia toda a assembleia. Irmãos!, disse Beaumanoir com uma voz potente que se repercutiu por sob as abóbadas do antigo mosteiro, irmãos! Se os prognósticos não mentem, se as promessas dos antigos e os preceitos da experiência não são vãs, está próximo o grande dia da vitória. Irmãos, a ordem do Templo vai ressurgir. Um murmúrio de alegria percorreu toda a assembleia: só Inácio de Loiola é que desfranziu os lábios num sorriso duma expressão indubitavelmente sarcástica; mas aquela nota discordante passou despercebida em meio do entusiasmo geral.
Sim, irmãos, prosseguiu o ancião com irresistível autoridade, as duas potências, que oprimiam a nossa ordem, o papado e a monarquia, estão em vésperas da sua queda. Desta vez a luz veio do Norte: enquanto a Espanha indómita e a sapiente Itália jaziam na opressão, um tedesco ergueu a voz, e a Igreja de Roma e o trono dos reis estremeceram nos seus alicerces... Irmãos, posso assegurar-vos a queda dos ímpios está próxima; o reinado dos eleitos de Deus aproxima-se!... E tens disso indícios certos?, perguntou altivamente um dos assistentes. Indícios certíssimos, príncipe de conde; e tu bem o sabes, tu, que no íntimo da tua alma saúdas a nova religião, e que já te terias declarado francamente luterano, se não to impedisse o receio que tens de perder a tua posição de príncipe e os teus imensos bens. Conde corou, e o presidente continuou assim: a Alemanha está em chamas; o corajoso Lutero ensinou aos povos o desprezo por todas as autoridades injustas, quer elas tenham na cabeça uma mitra, quer um elmo». In Ernesto Mezzabota, O Papa Negro, 1947, tradução de Adolfo Portela, Brasil, Exilado dos Livros, Epub, 2001, ISBN 858-671-001-6.

Cortesia de Wikipedia/JDACT