Cortesia
de wikipedia
A
área de Broca
«(…)
Muito bem. Mas a área de Broca tem mais de cem anos. No entanto o lugar onde o
cérebro conserva as lembranças ainda é matéria de discussão, certamente as
coisas não dependem de uma única área. Não quero entediá-lo com termos
científicos, que além de tudo só aumentariam a confusão em sua cabeça, sabe
quando o dentista faz alguma coisa em um dente e continuamos a tocá-lo com a
língua por alguns dias?; se eu lhe dissesse, sei lá, que não estou tão
preocupado com o seu hipocampo quanto com os lobos frontais e talvez com a
córtex órbito-frontal direita, o senhor tentaria se tocar bem ali, e não é como
explorar a boca com a língua. Frustrações até não acabar mais. Portanto esqueça
o que acabei de lhe dizer. Ademais cada cérebro é diferente dos outros, e nosso
cérebro tem uma extraordinária plasticidade, pode acontecer que depois de algum
tempo o senhor seja capaz de passar para uma outra área o que a área atingida
não consegue mais fazer. Está me acompanhando, estou sendo bastante claro? Claríssimo,
prossiga. Mas não é mais rápido dizer que sou o desmemoriado de Collegno? Está
vendo como se lembra do desmemoriado de Collegno, um caso clássico? É somente
de si, que não é clássico, que o senhor não lembra. Preferia ter esquecido o
desmemoriado de Collegno e lembrado onde foi que nasci.
Seria
um caso mais raro. Veja, o senhor logo identificou o tubinho do dentifrício,
mas não se lembra de que é casado, e de facto lembrar o dia do próprio matrimónio
e identificar a pasta de dente dependem de duas redes cerebrais diversas. Temos
diversos tipos de memória. Uma se chama implícita e nos permite executar sem
esforço uma série de coisas que aprendemos, como escovar os dentes, ligar o
rádio e dar um nó na gravata. Depois da experiência dos dentes estou pronto
para apostar que o senhor sabe escrever, talvez até conduzir. Quando a memória
implícita nos ajuda, não temos nem consciência de que recordamos, agimos
automaticamente. Depois tem a memória explícita, com a qual recordamos e
sabemos que estamos recordando. Mas essa memória explícita é dupla. Uma é
aquela que a tendência agora é chamar de memória semântica, uma memória colectiva,
aquela através da qual se sabe que uma andorinha é um pássaro e que os pássaros
voam e têm penas, e que Napoleão morreu quando... quando o senhor falou. E esta
me parece que a do senhor está em ordem, por Deus!, talvez até demais, pois
basta que lhe dê um input e já começa a conectar lembranças que eu definiria
como escolásticas, ou a usar frases feitas. Mas essa é a primeira que se forma,
mesmo na criança; a criança aprende rapidamente a reconhecer uma máquina, ou um
cão, e a formar esquemas gerais, portanto se viu um pastor alemão uma vez e lhe
disseram que é um cachorro, ela dirá cachorro mesmo quando vir um labrador. Mas
por outro lado, a criança leva mais tempo para elaborar o segundo tipo de
memória explícita, que chamamos de episódica ou autobiográfica. Não é capaz,
por exemplo, de recordar de imediato vendo um cachorro, de que no mês anterior
esteve no jardim da avó e viu um cão e que foi ela própria quem viveu as duas
experiências. É a memória episódica que estabelece um nexo entre o que somos
hoje e o que fomos, senão, quando disséssemos eu, estaríamos nos referindo
apenas àquilo que sentimos agora, não ao que sentíamos antes, que se perderia
justamente na névoa. O senhor não perdeu a memória semântica mas a episódica, quer
dizer, os episódios de sua vida. Em suma, diria que sabe tudo que os outros
sabem, e imagino que se lhe perguntasse qual é a capital do Japão...» In
Umberto Eco, A Misteriosa Chama da Rainha Loana, tradução de Eliana Aguiar,
2004, Editora Record, 2005, ISBN 978-850-107-143-9.
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