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(…) Era
já noite, muitas vezes, quando ia só para casa, fora do cemitério. O pai ficava
embrulhado num cobertor com um gorro de lã preta, por cujos rasgões lhe furavam
os cabelos; deitava-se no côncavo de algum velho túmulo vazio; se caía geada,
erguia a tampa de um jazigo de família para ir estender-se nas gavetas, entre
caixões de chumbo. Já estava acostumado àquela folia, e depois, assim, não
dormia as manhãs na cama, e podia começar cedo o trabalho, regando logo de
madrugada os canteiros dos túmulos das famílias que lhe pagavam esse trabalho,
varrendo dos pedestais as folhas secas que o vento despregava dos ramos, e alta
noite, com passadas lentas e lúgubres, nas trágicas encruzilhadas dos
ciprestes, reanimando ou acendendo, com o rolo metido nos dedos, as lâmpadas
extintas pelas lufadas do nordeste. Nem uma vez se lembrou de Carolina que
ficava de noite, na cidade, separada dele, a sua filha, entregue à leviandade
dos seus quinze e aos furores de coração de um aprendiz de marceneiro que a
perseguia, preso de maus instintos. Carolina era branca, delicada e nervosa; o
seu sangue tinha originalidades singulares, inquietações de luta e o furor da
aventura, e do seu seio dimanava essa ânsia ardente de que se fazem os gozos,
ansiava como uma sede antiga. Dormiam numa casita arruinada e miseranda, oculta
no fundo de um pátio sem luz de lampião, para onde abriam as janelas de
tabuinhas de casas suspeitas, em que marinheiros tocavam guitarra. A história
das suas exaltações enraizava também, como uma hera, naquelas más janelas,
pelas noites escuras de Verão, quando, encostada ao peitoril da janela,
escutava altercações, descantes e venalidades, na confidência de carroceiros. Nestas
disputas Carolina entrevia uma coisa, que se apoderava rapidamente do seu
organismo, enroscando-se-lhe no corpo como serpente com frio, amarrotando e
poluindo no amplexo alguma, ainda que pouca, dessa adorável modéstia que é o
tesouro das mulheres honestas. Viam-na de manhã, quando saía, dar bons-dias à
vizinhança e sorrir às pecadoras mendigas, que nas tabernas jantavam gravanzos
por qualquer pataco, ter com elas palestras. Desassombradamente olhava para os
homens, tinha desdéns para uma ordem de gente e criara predilecções pelos
louros; nos seus trapos escolhia sempre cores que dessem na vista; e,
calculista, com o olho febril, arquitectava aventuras: seria de noite, uma
chuva miúda peneirar-se-ia do alto, sobre as calçadas; fugiria embrulhada no
xalito com um louro... Hem? Da janela da sua mansarda, empinada sobre um banco
de pinho, podia ver o que se passava na alcova de um pobre bordel carairo.
Apagava a luz para não ser vista, subia ao banco, encostada à janela; e ali,
durante horas, passava a espreitar o que fazia a vizinhança. Cenas equívocas
desenrolavam-se por lá. Era tão curioso! A nudez impura dos contactos fazia-lhe
regurgitar de dentro uma seiva cuja plenitude a estonteava. Era a febre do
sangue inficionado pelos microzimas do vício e o desejo de cadela nubente que
uma força espicaça de irritantes curiosidades e terrores deliciosos. Aquilo
vinha-lhe às ondas, como a babuge das praias contra fraguedos solitários. Coroas
de padres esverdeados mostravam-se à luz de candeeiros de petróleo; no
espelhinho dos toucadores das cómodas reflectiam-se grupos sombrios, estranhas
fantasias das encarnações de Vixnu. E alguém, dedilhando guitarras, entoava com
voz rouca fados rasteiros do conde de Vimioso e da Severa, entre exalações de
aguardente. E tiniam garrafas, sentia-se o cheiro das sardinhas assadas. Toasts
desbragados expluíam claramente. As vozes das mulheres guinchavam. Alguém
rolava pelo sobrado e rimas de pratos caíam, com estrondo, em migalhas, no meio
de pragas de raios de uma vez, tresloucada, descera à rua. Domingos de Inverno.
A noite lôbrega alonga-se. Alguém gritava, Jornal da Noite, traz a lista de
Espanha! O frio penetrava as carnes. Carolina tremia, lábios secos, uma aflição
enorme subindo-lhe do estômago. Não sabia para onde ir. Quereria as coisas mais
violentas, amplexos de ferro, beijos de lava, o vasto oceano de um amor sem fim
e sem felicidade. Mas o aprendiz de marceneiro, um rapaz atlético e sanguíneo,
apetites excêntricos, saía da oficina, dava com ela, aproximava-se com uma
piada...» In Fialho de Almeida, A Ruiva e Outras Histórias, 1881, Contos, Luso
Livros, Nova Forma de Ler, ISBN 978-972-370-963-6.
Cortesia
de LLivros/JDACT