quarta-feira, 28 de setembro de 2016

A Ruiva e Outras Histórias. Fialho de Almeida. «E alguém, dedilhando guitarras, entoava com voz rouca fados rasteiros do conde de Vimioso e da Severa, entre exalações de aguardente. E tiniam garrafas, sentia-se o cheiro das sardinhas assadas»

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(…) Era já noite, muitas vezes, quando ia só para casa, fora do cemitério. O pai ficava embrulhado num cobertor com um gorro de lã preta, por cujos rasgões lhe furavam os cabelos; deitava-se no côncavo de algum velho túmulo vazio; se caía geada, erguia a tampa de um jazigo de família para ir estender-se nas gavetas, entre caixões de chumbo. Já estava acostumado àquela folia, e depois, assim, não dormia as manhãs na cama, e podia começar cedo o trabalho, regando logo de madrugada os canteiros dos túmulos das famílias que lhe pagavam esse trabalho, varrendo dos pedestais as folhas secas que o vento despregava dos ramos, e alta noite, com passadas lentas e lúgubres, nas trágicas encruzilhadas dos ciprestes, reanimando ou acendendo, com o rolo metido nos dedos, as lâmpadas extintas pelas lufadas do nordeste. Nem uma vez se lembrou de Carolina que ficava de noite, na cidade, separada dele, a sua filha, entregue à leviandade dos seus quinze e aos furores de coração de um aprendiz de marceneiro que a perseguia, preso de maus instintos. Carolina era branca, delicada e nervosa; o seu sangue tinha originalidades singulares, inquietações de luta e o furor da aventura, e do seu seio dimanava essa ânsia ardente de que se fazem os gozos, ansiava como uma sede antiga. Dormiam numa casita arruinada e miseranda, oculta no fundo de um pátio sem luz de lampião, para onde abriam as janelas de tabuinhas de casas suspeitas, em que marinheiros tocavam guitarra. A história das suas exaltações enraizava também, como uma hera, naquelas más janelas, pelas noites escuras de Verão, quando, encostada ao peitoril da janela, escutava altercações, descantes e venalidades, na confidência de carroceiros. Nestas disputas Carolina entrevia uma coisa, que se apoderava rapidamente do seu organismo, enroscando-se-lhe no corpo como serpente com frio, amarrotando e poluindo no amplexo alguma, ainda que pouca, dessa adorável modéstia que é o tesouro das mulheres honestas. Viam-na de manhã, quando saía, dar bons-dias à vizinhança e sorrir às pecadoras mendigas, que nas tabernas jantavam gravanzos por qualquer pataco, ter com elas palestras. Desassombradamente olhava para os homens, tinha desdéns para uma ordem de gente e criara predilecções pelos louros; nos seus trapos escolhia sempre cores que dessem na vista; e, calculista, com o olho febril, arquitectava aventuras: seria de noite, uma chuva miúda peneirar-se-ia do alto, sobre as calçadas; fugiria embrulhada no xalito com um louro... Hem? Da janela da sua mansarda, empinada sobre um banco de pinho, podia ver o que se passava na alcova de um pobre bordel carairo. Apagava a luz para não ser vista, subia ao banco, encostada à janela; e ali, durante horas, passava a espreitar o que fazia a vizinhança. Cenas equívocas desenrolavam-se por lá. Era tão curioso! A nudez impura dos contactos fazia-lhe regurgitar de dentro uma seiva cuja plenitude a estonteava. Era a febre do sangue inficionado pelos microzimas do vício e o desejo de cadela nubente que uma força espicaça de irritantes curiosidades e terrores deliciosos. Aquilo vinha-lhe às ondas, como a babuge das praias contra fraguedos solitários. Coroas de padres esverdeados mostravam-se à luz de candeeiros de petróleo; no espelhinho dos toucadores das cómodas reflectiam-se grupos sombrios, estranhas fantasias das encarnações de Vixnu. E alguém, dedilhando guitarras, entoava com voz rouca fados rasteiros do conde de Vimioso e da Severa, entre exalações de aguardente. E tiniam garrafas, sentia-se o cheiro das sardinhas assadas. Toasts desbragados expluíam claramente. As vozes das mulheres guinchavam. Alguém rolava pelo sobrado e rimas de pratos caíam, com estrondo, em migalhas, no meio de pragas de raios de uma vez, tresloucada, descera à rua. Domingos de Inverno. A noite lôbrega alonga-se. Alguém gritava, Jornal da Noite, traz a lista de Espanha! O frio penetrava as carnes. Carolina tremia, lábios secos, uma aflição enorme subindo-lhe do estômago. Não sabia para onde ir. Quereria as coisas mais violentas, amplexos de ferro, beijos de lava, o vasto oceano de um amor sem fim e sem felicidade. Mas o aprendiz de marceneiro, um rapaz atlético e sanguíneo, apetites excêntricos, saía da oficina, dava com ela, aproximava-se com uma piada...» In Fialho de Almeida, A Ruiva e Outras Histórias, 1881, Contos, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ISBN 978-972-370-963-6.

Cortesia de LLivros/JDACT