quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Celestial. Cynthia Hand. «Estava a pensar, diz ele agora. Talvez tu e o Jeffrey possam vir passar os feriados a Nova Iorque. Quase me rio do seu sentido de oportunidade»

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«(…) O cabelo é o que tenho de mais bonito, longo e ondulado, de um dourado vivo e ligeiramente arruivado, seguindo-me para onde quer que vou como um pensamento tardio. O problema do meu cabelo é que é completamente indomável. Emaranha-se. Prende-se às coisas: fechos de correr, portas de carros, comida. Apanhá-lo atrás ou entrança-lo nunca resulta. É como uma coisa viva que luta para se libertar. Passados alguns momentos de o ter domado, já tenho madeixas na cara e, geralmente, passada uma hora, desliza completamente para fora das suas amarras. Dá um sentido completamente diferente à palavra indomável. Por isso, com a sorte que eu tenho, nunca chegarei a tempo de salvar o rapaz que está na floresta, porque o meu cabelo ter-se-á emaranhado no ramo de uma árvore a um quilómetro e meio de distância.
Clara, o teu telefone está a tocar!, grita a mãe da cozinha. Salto assustada. O meu diário está aberto à minha frente, em cima da minha secretária. Sobre a página está um esboço cuidadoso da nuca do rapaz, do pescoço, do seu cabelo revolto, a sugestão de uma face e de pestanas. Não me lembro de tê-lo desenhado. Está bem!, grito de volta. Fecho o diário e coloco-o debaixo do meu manual de álgebra. Depois corro para o andar de baixo. Cheira a padaria. Amanhã é o Dia de Acção de Graças, e a mãe tem estado a fazer tartes. Tem posto o seu avental de dona de casa dos anos cinquenta (o qual possui desde os anos cinquenta, embora, segundo ela, não fosse uma dona de casa nessa altura) e está cheio de farinha. Estende-me o telefone. É o teu pai. Ergo uma sobrancelha numa interrogação silenciosa. Não sei, responde ela. Entrega-me o telefone, depois volta-se e abandona discretamente a divisão. Olá, pai, falo para o telefone. Olá. Faz-se silêncio. Ainda só trocámos três palavras e ele já não tem mais nada para dizer. A que se deve este telefonema? Durante algum tempo, ele não diz nada. Suspiro. Ensaiei um discurso durante anos, sobre como estava zangada por ele ter deixado a mãe. Tinha três anos quando eles se separaram. Não me lembro de os ouvir discutir. Retenho apenas uns breves lampejos do tempo em que eles estavam juntos. Uma festa de aniversário. Uma tarde passada na praia. Ele de pé, em frente ao lavatório, a barbear-se. E depois conservo a memória brutal do dia em que ele se foi embora, eu com a mãe no caminho do carro, ela a segurar Jeffrey na anca e a chorar desesperadamente enquanto ele se afastava de carro. Não consigo perdoá-lo por isso. Não consigo perdoá-lo por muitas coisas. Por se ter mudado para o outro lado do país para se afastar de nós. Por não telefonar o suficiente. Por nunca saber o que dizer quando decide telefonar. Mas, acima de tudo, não consigo ultrapassar a forma como o rosto da mãe se retrai cada vez que ouve o seu nome.
A mãe fala tanto do que aconteceu entre eles como do seu propósito. Mas sei pelo menos uma coisa: a minha mãe está mais perto de ser a mulher perfeita do que qualquer outra mulher do mundo. Ela é meio-anjo, afinal, apesar de o meu pai não o saber. É bonita. É inteligente e divertida. É mágica. E ele abdicou dela. Abdicou de todos nós. E isso, na minha opinião, faz dele um tolo. Só queria saber se estás bem, diz ele, finalmente. Por que não estaria? Ele tosse. Bem, é difícil ser-se adolescente, certo? Escola secundária. Rapazes. Agora a conversa passou de invulgar a estranha. Certo, respondo. Sim, é difícil. A tua mãe diz que as tuas notas são boas. Falaste com a mãe? Outro si1êncio. Como vai a vida em Nova Iorque?, pergunto, para desviar de mim o assunto da conversa. Como sempre. Luzes brilhantes. Cidade grande. Ontem vi Derek Jeter (jogador de beisebol) em Central Park. É uma vida horrível.
Também consegue ser encantador. Quero estar zangada com ele, dizer-lhe que não deve dar-se ao trabalho de tentar manter uma ligação comigo, mas nunca sou capaz de ir até ao fim. A última vez que o vi foi há dois anos, no Verão em que fiz catorze anos. Treinara muito o meu discurso do odeio-te no aeroporto, no avião, à saída do portão, no terminal. Mas depois vi-o à minha espera na zona de recolha de bagagens e enchi-me de uma felicidade bizarra. Atirei-me para os seus braços e disse-lhe que tivera saudades suas. Estava a pensar, diz ele agora. Talvez tu e o Jeffrey possam vir passar os feriados a Nova Iorque. Quase me rio do seu sentido de oportunidade. Gostaria de ir, digo, mas tenho uma coisa importante para fazer neste momento. Como por exemplo, localizar um incêndio florestal. A única razão pela qual estou aqui na Terra. A qual nunca lhe poderei explicar, nem num milhão de anos. Ele não responde. Desculpa, peço, e choco-me com o facto de estar a ser sincera. Depois digo-te se alguma coisa mudar. A tua mãe também me disse que passaste no Exame de Condução. Ele está obviamente a tentar mudar de assunto. Sim, fiz o exame e estacionei em fila e tudo. Tenho dezasseis anos. Legalmente, já posso conduzir. Mas a mãe não me deixa sair com o carro». In Cynthia Hand, Celestial, 2010, tradução de Marta Teixeira Pinto, Saída de Emergência, 2011, ISBN 978-989-637-306-1. 
Cortesia de SdeEmergência/JDACT