quinta-feira, 8 de setembro de 2016

O Pintor de Sombras. Esteban Martin. «Se alguma vez, na sua juventude, acreditou possuir uma centelha daquela chama intangível e não apenas uma vocação frustrada, a vida doméstica, as mulheres…»

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Pablo Picasso. El Torín
Barcelona. Setembro de 1896
«(…) José não se preocupou em excesso com as dificuldades do rapaz em aprender a contar e saber a hora, ou por os seus progressos na escola não serem próprios da idade que tinha. Preocupou-se antes em proporcionar-lhe pessoalmente lições de desenho e pintura. Ensinou ao filho tudo o que sabia, todos os seus conhecimentos técnicos, uma base sólida para o desenho e, o mais importante, disciplina. Em contrapartida, nunca teve aluno mais capaz e entusiasta. Passara a vida em perseguição de uma quimera. Nunca fora o que sempre desejara ser: um grande pintor. E, naquela altura da sua existência, de pouco valia culpar a má sorte ou a necessidade de sustentar, com o seu modesto salário de professor de desenho e de conservador do museu de Málaga, a mulher, as suas duas irmãs, a sogra e os filhos. Todos na mesma casa. As preocupações diárias fizeram-no perder aos poucos a fé no seu talento. Talvez nunca o tivesse tido não passando de simples apaixonado pela pintura com uma base técnica sólida e nada mais. Um pintor era algo diferente e, agora, quando se via ao espelho, custava-lhe encontrar algum rasgo de génio, de originalidade, de vivacidade, de brio naquela face que, enquanto jovem, confundira a paixão artística com algo mais sublime e relacionado com o talento criador. Se alguma vez, na sua juventude, acreditou possuir uma centelha daquela chama intangível e não apenas uma vocação frustrada, a vida doméstica, as mulheres da sua casa, os filhos, a rotina, as aulas mal pagas e a sua vida de funcionário haviam frustrado todos os seus anseios juvenis. José não era ninguém. Um pai de família vencido pelo dia-a-dia. Um fracassado. Seguiu-se a peregrinação de cidade em cidade. Abandonou Málaga, a sua cidade luminosa e alegre, trocando-a por outra a norte, triste, chuvosa e cinzenta. Em Málaga substituíra o seu amigo e pintor afamado Antonio Muñoz Degrain.
Mas o ingresso como professor na Escola de Artes e Ofícios de San Telmo permitia apenas sustentar à justa a sua numerosa família. Para cúmulo, o Ayuntamiento tomou a decisão de encerrar o museu de que José era conservador, a principal fonte de receita para permitir chegar sem dificuldades ao fim do mês. Precisava de tomar uma decisão. Mas fora em Málaga que tivera as suas duas filhas, Concha e María, e foi também aí que esteve prestes a perder o seu primogénito, não fosse o irmão, médico e fundador do Instituto de Vacinação de Málaga, a reanimar o recém-nascido, mais morto que vivo, soprando-lhe uma baforada de fumo do seu charuto para os pulmões. Sentiria falta da magnífica praça de touros de Málaga, com capacidade para dez mil espectadores. Levava Pablito aos touros desde tenra idade e o menino acostumou-se a ver como os cavalos eram estripados na arena. Não tinha ainda dez anos quando pintou um óleo sobre madeira representando um picador, com as pernas couraçadas, instalado solidamente sobre a sua sela. O quadro satisfez enormemente José.
Um magnífico cavalo. Nobre e poderoso, disse ao filho. Talvez apenas um pouco pequeno, acrescentou. Não agradou a José ter a Corunha como destino seguinte. Não foi feliz na cidade, ensinando desenho e decoração na Escola Provincial de Belas-Artes. Foi antes da transferência que se deu conta de que o filho, para a idade que tinha, era um analfabeto total, a quem só interessava desenhar e pintar. Como o admitiriam num colégio da Corunha se nem sequer sabia somar dois e dois? Socorreu-se dos amigos para conseguir um certificado de habilitações falso. Conseguiu que submetessem o rapaz a um exame. Três mais um, mais quarenta, mais sessenta e seis e mais trinta e oito?, perguntou-lhe o examinador. O rapaz tentou ordenar os números com êxito escasso e o examinador disse-lhe que não ficasse nervoso e que repetisse novamente a operação. Se quiser, faço-lhe um desenho, disse Pablito. Soma, disse-lhe o examinador, desesperado e com tom benévolo. Pensava nas coisas que tinha de fazer pelos amigos!...
O rapaz aproximou-se da mesa do professor e mostrou-lhe como havia disposto os números. Viu como o examinador apontava o resultado da operação num papel e o colocava num extremo da mesa, à frente dos olhos do pequeno. Pablo memorizou o resultado, regressou à sua mesa e copiou-o, depois de traçar uma linha. O examinador recolheu o exame. Muito bem, Pablo. Muito bem. Copiei bem?, perguntou o rapaz com uma naturalidade que desconcertou o professor. Este não respondeu à pergunta, mas afirmou: uma linha magnífica. Perfeita. O melhor da operação. Anda, pequeno. Diz ao teu pai que pode vir buscar o teu certificado quando quiser». In Esteban Martin, O Pintor de Sombras, 2008, tradução de Renato Carreira, Saída de Emergência, 2011, ISBN 978-989-637-310-8.

Cortesia SEmergência/JDACT