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«Eu bem
affirmava que este livro não satisfaria a ninguém!... Acoimado de miguelismo, Portugal
condemnado como espirito azedo e pessimista, tive a sorte que esperava, e os motivos
d’esta minha espectativa provaram fundados. Levou-se a mal, como era de suppor,
que eu procurasse deslindar da teia de lendas absurdas ou risíveis o caracter
pessoal do infante Miguel: chamou-se a isso uma apologia. Nem um facto, nem uma
inducção legitima, foram, todavia, contestados, o que me leva a não alterar o
retrato d’esse príncipe, sympathico para mim na sua infelicidade. E tenho até a
vaidade de acreditar na perspicácia d’este sentimento, parecendo-me que, se de futuro
a historia voltar a occupar-se de Miguel, ha de concordar mais commigo do que com
os auctores do retrato do monstro. Esses auctores escreviam com a penna molhada
no fel amargo do ódio. Disse-se-me também que eu reduzia a muito pouco o alcance
ou o valor da Carta de 20; e sem concordar com a critica, achando todavia útil desenvolver
mais certos pontos, retoquei essa parte da obra. Mas quando se allega ser erro o
notar eu a exclusão dos morgados do pariato, pois, sendo livre do rei a nomeação
dos pares, a Carta ninguém exclue, devo responder que a Carta, com effeito, não
os excluia (nem eu jamais o disse), mas excluia-os o monarca Pedro não os nomeando,
e até a própria força das cousas impedindo a entrada de uns milhares de nobres menores
na camara alta. Eram em numero demasiado. Outros reparos, a que não alludo para
não ser extenso, vão ou não vão attendidos no texto, conforme se me affiguraram
fundados ou mal cabidos.
Não me
surprehenderam as censuras dos nossos jacobinos mais do que as dos liberaes:
prevía-as egualmente. O meu livro, disseram, é um quadro pittoresco, mas falta-lhe
o principio orgânico, a linha lógica, porque eu anão soube ou não quiz vêr na tradição
revolucionaria de 20, esse movimento em que pela primeira vez se revelou a
classe média de advogados, jurisconsultos e coronéis. Pinta com cores
verdadeiras, prosegue o meu critico, esta dissolução do regimen monarchico parlamentar,
mas é injusto lançando á conta do organismo da nação o que é produzido pelo corpo
estranho da realeza e dos políticos vendidos. Ora eu, não sendo individualista,
nem até politicamente liberal, não podia achar na tradição de 20 a linha lógica;
e pensando que as nações teem sempre aquelle governo que querem ou que merecem,
não podia tampouco ter na conta de corpo estranho a realeza nem os políticos. Ella
e elles e o povo e todos pareceram-me antes efeitos do que causas. Se pretendi mostrar
por quanta entrava nas misérias da nossa historia contemporânea a fraqueza dos caracteres,
a apathia ou a loucura das populações, o desvairamento dos chefes: patenteei, parece
me, quanto esses males sociaes provinham, não só dos legados da historia, como da
influencia deprimente e desorganizadora das theorias do naturalismo individualista,
herdado da philosophia do século XVIII e popularizado pela revolução franceza. Sob
o nome indefinível de liberalismo, essas doutrinas, nos seus aspectos successivos,
vieram terminar afinal no materialismo pratico, fazendo dos melhoramentos materiaes
o pensamento exclusivo do povo, e do governo uma agencia de caminhos de ferro. Como
se nós valêssemos absolutamente mais por andarmos em doze horas, em vez de trinta
ou trinta e seis, a distancia de Lisboa ao Porto! Mas o que offendeu sobretudo liberaes
e jacobinos foi o tora pessimista, ao que dizem, da obra. Eu tinha-a por justiceira
apenas, e até ás vezes caridosa. Fica- se com a cara a uma banda.
Pois
fique-se. Concordo que a attitude é desagradável, mas, na rainha missão de critico,
não posso alterar a significação dos factos, sem poder também acreditar que
tamanhos males venham apenas da circumstancia de haver sobre um estrado de
alguns degraus um homem de manto e coroa com as mãos atadas pelos políticos de espadim
e farda. Elles governarão o rei, mas quem os escolhe a elles é o povo: se são maus,
porque os prefere? Não. A culpa é portanto nossa, de todos nós, que não valemos
grande cousa, fique se embora com a cara a uma banda!» In J. Oliveira Martins, Portugal
Contemporâneo, Livraria António Pereira, Lisboa, 1895, University of Toronto,
2000.
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