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«Por todos os preconceitos, desconfianças e
crenças que o assunto revolve, entabular conversa sobre fantasmas e casas assombradas
não é desafio fácil. Nas aldeias, os velhos ainda contam as histórias que lhes povoam
os lugares da memória com naturalidade, mas nas grandes cidades as referências são
escassas e fugazes, os narradores fugidios. Ainda assim, há fantasmas ao virar da
esquina. Uma certa tarde de pesquisa no Gabinete de Estudos Olisiponenses, divisão
da Câmara Municipal de Lisboa que tem como intuito cooperar com a comunidade científica
para o estudo e a reflexão sobre a cidade, comprovou-o. Uma cidade que pode ter
muitas dimensões. Algumas delas escondidas. Como aquela, que logo ali se desvendou.
Histórias de fantasmas na cidade?, quer saber o historiador Ernesto
Jana, técnico superior do gabinete. Olhe que nós, por acaso, temos um aqui. É o
barão da Glória! O barão que arrasta grossos volumes de livros e caixotes de
documentos pelo Palácio do Beau Séjour fora, e que pôs os funcionários da Câmara
com os cabelos em pé à procura do espólio perdido. O mesmo espólio que muitos dias
de procura depois se encontrava exactamente no local onde tinha sido deixado, por
obra e graça do tal barão que também faz tilintar as chávenas em cima das mesas
e soar as campainhas da quinta de São Domingos de Benfica, onde viveu, morreu e
amou a arte. Não está sozinho, o barão da Glória, num país
que, de lés-a-lés, tem personagens e histórias assombradas para contar: no Castelo
de Almourol ou no de Bragança, amores incompreendidos deixaram espectros a pairar
nas suas torres e ameias. Na Serra de Sintra sobram razões para ter medo, tantos
são os relatos e os testemunhos. No Porto, há espectros a discutir a herança
pela calada da noite e apartamentos que, afinal, contra todas as razões da lógica,
não estão vazios como aparentam. Em Castro Marim, as mouras ainda andam à solta,
e em Penafiel os sustos marcam o ritmo dos dias na Quinta da Juncosa, que há séculos
foi palco de um crime hediondo. As situações mais insólitas, como a da inacabada
casa em Langarinhos, Gouveia, obra que nenhum proprietário consegue finalizar, causam
um friozinho no estômago a uns, sorriso trocista a outros, mas estão longe de ser
únicas, num fenómeno cultural global. Lá fora, há poucos meses, a notícia encheu
os títulos gordos dos jornais: Cláudia Schiffer e o marido, Matthew Vaughn, tinham
acabado de se mudar com os três filhos para uma tradicional casa de campo vitoriana
em Suffolk, East Anglia, Inglaterra, quando se sentiram atormentados pelo fantasma
de Penélope, uma antiga dama da corte, aparentemente pouco disposta a dividir o
seu secular tecto com os forasteiros. A mansão foi alvo da intervenção de
especialistas em exorcismos e, só depois disso, a família de Schiffer pôde então
desfazer as malas sossegada. O caso mais ilustre diz respeito à Casa Branca,
onde vários presidentes norte-americanos e as suas famílias se viram
importunados pelos fantasmas dos seus antecessores! Jenna Bush, filha do presidente George W.
Bush, confessou mesmo ter ouvido música clássica sair da lareira, do seu quarto
na Casa Branca. Ouvi ópera a sair da minha lareira. Quando disse à minha irmã Barbara,
ela não acreditou. Mas voltou a acontecer na semana seguinte, desta vez com música
dos anos 50, confessou numa entrevista à Texas Monthly. Depois do episódio,
nunca mais voltou a dormir na mais poderosa residência oficial do mundo. O site
da Casa Branca (www.whitehouse.gov) dedica uma página inteira aos seus respeitáveis
fantasmas, onde pode ler-se, por exemplo, que ao longo de várias décadas o staff
governamental viu Abraham Lincoln divagar pelos corredores do número 1600 da
Pennsylvania Avenue. Winston Churchill recusou-se mesmo a dormir no quarto de Lincoln,
depois de ali ter avistado o seu vulto. Harry Truman, em 1946, garantia numa
carta dirigida à mulher, Bess: este lugar está assombrado, tão certo como dois e
dois serem quatro. O Reino Unido, o país que clama mais fantasmas por metro quadro
do que qualquer outro, tem igualmente o seu séquito de espectros notáveis e lugares
(muitos) assombrados, incluindo monumentos mundialmente famosos, como a Torre de
Londres ou o Castelo de Old Wardour. Mas afinal de onde vêm as histórias sobre
fantasmas, intemporais e universais, e o que as torna tão impressionantes ao ponto
de perdurarem através dos séculos? Que medos e preocupações desvendam e como têm
evoluído desde os tempos mais remotos da história dos povos até aos nossos dias,
nas suas modernas versões urbanas? E de que forma todas estas histórias, que em
abono da verdade dão pelo nome de lendas, podem encaixar num universo ainda maior
e de formidável riqueza, que é o da literatura oral? Que papel desempenham na sociedade?»
In
Vanessa Fidalgo, Histórias de um Portugal Assombrado, 2012, A Esfera dos
Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-371-3.
Cortesia de
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