sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Histórias de um Portugal Assombrado. Vanessa Fidalgo. «Não está sozinho, o barão da Glória, num país que, de lés-a-lés, tem personagens e histórias assombradas para contar: no Castelo de Almourol ou no de Bragança, amores incompreendidos deixaram espectros a pairar nas suas torres e ameias»


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«Por todos os preconceitos, desconfianças e crenças que o assunto revolve, entabular conversa sobre fantasmas e casas assombradas não é desafio fácil. Nas aldeias, os velhos ainda contam as histórias que lhes povoam os lugares da memória com naturalidade, mas nas grandes cidades as referências são escassas e fugazes, os narradores fugidios. Ainda assim, há fantasmas ao virar da esquina. Uma certa tarde de pesquisa no Gabinete de Estudos Olisiponenses, divisão da Câmara Municipal de Lisboa que tem como intuito cooperar com a comunidade científica para o estudo e a reflexão sobre a cidade, comprovou-o. Uma cidade que pode ter muitas dimensões. Algumas delas escondidas. Como aquela, que logo ali se desvendou. Histórias de fantasmas na cidade?, quer saber o historiador Ernesto Jana, técnico superior do gabinete. Olhe que nós, por acaso, temos um aqui. É o barão da Glória! O barão que arrasta grossos volumes de livros e caixotes de documentos pelo Palácio do Beau Séjour fora, e que pôs os funcionários da Câmara com os cabelos em pé à procura do espólio perdido. O mesmo espólio que muitos dias de procura depois se encontrava exactamente no local onde tinha sido deixado, por obra e graça do tal barão que também faz tilintar as chávenas em cima das mesas e soar as campainhas da quinta de São Domingos de Benfica, onde viveu, morreu e amou a arte. Não está sozinho, o barão da Glória, num país que, de lés-a-lés, tem personagens e histórias assombradas para contar: no Castelo de Almourol ou no de Bragança, amores incompreendidos deixaram espectros a pairar nas suas torres e ameias. Na Serra de Sintra sobram razões para ter medo, tantos são os relatos e os testemunhos. No Porto, há espectros a discutir a herança pela calada da noite e apartamentos que, afinal, contra todas as razões da lógica, não estão vazios como aparentam. Em Castro Marim, as mouras ainda andam à solta, e em Penafiel os sustos marcam o ritmo dos dias na Quinta da Juncosa, que há séculos foi palco de um crime hediondo. As situações mais insólitas, como a da inacabada casa em Langarinhos, Gouveia, obra que nenhum proprietário consegue finalizar, causam um friozinho no estômago a uns, sorriso trocista a outros, mas estão longe de ser únicas, num fenómeno cultural global. Lá fora, há poucos meses, a notícia encheu os títulos gordos dos jornais: Cláudia Schiffer e o marido, Matthew Vaughn, tinham acabado de se mudar com os três filhos para uma tradicional casa de campo vitoriana em Suffolk, East Anglia, Inglaterra, quando se sentiram atormentados pelo fantasma de Penélope, uma antiga dama da corte, aparentemente pouco disposta a dividir o seu secular tecto com os forasteiros. A mansão foi alvo da intervenção de especialistas em exorcismos e, só depois disso, a família de Schiffer pôde então desfazer as malas sossegada. O caso mais ilustre diz respeito à Casa Branca, onde vários presidentes norte-americanos e as suas famílias se viram importunados pelos fantasmas dos seus antecessores! Jenna Bush, filha do presidente George W. Bush, confessou mesmo ter ouvido música clássica sair da lareira, do seu quarto na Casa Branca. Ouvi ópera a sair da minha lareira. Quando disse à minha irmã Barbara, ela não acreditou. Mas voltou a acontecer na semana seguinte, desta vez com música dos anos 50, confessou numa entrevista à Texas Monthly. Depois do episódio, nunca mais voltou a dormir na mais poderosa residência oficial do mundo. O site da Casa Branca (www.whitehouse.gov) dedica uma página inteira aos seus respeitáveis fantasmas, onde pode ler-se, por exemplo, que ao longo de várias décadas o staff governamental viu Abraham Lincoln divagar pelos corredores do número 1600 da Pennsylvania Avenue. Winston Churchill recusou-se mesmo a dormir no quarto de Lincoln, depois de ali ter avistado o seu vulto. Harry Truman, em 1946, garantia numa carta dirigida à mulher, Bess: este lugar está assombrado, tão certo como dois e dois serem quatro. O Reino Unido, o país que clama mais fantasmas por metro quadro do que qualquer outro, tem igualmente o seu séquito de espectros notáveis e lugares (muitos) assombrados, incluindo monumentos mundialmente famosos, como a Torre de Londres ou o Castelo de Old Wardour. Mas afinal de onde vêm as histórias sobre fantasmas, intemporais e universais, e o que as torna tão impressionantes ao ponto de perdurarem através dos séculos? Que medos e preocupações desvendam e como têm evoluído desde os tempos mais remotos da história dos povos até aos nossos dias, nas suas modernas versões urbanas? E de que forma todas estas histórias, que em abono da verdade dão pelo nome de lendas, podem encaixar num universo ainda maior e de formidável riqueza, que é o da literatura oral? Que papel desempenham na sociedade?» In Vanessa Fidalgo, Histórias de um Portugal Assombrado, 2012, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-371-3. 
Cortesia de EdosLivros/JDACT