sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Um Postal de Detroit. João Ricardo Pedro. «… em certas noites de Maio, junto aos desfiladeiros das Portas de Ródão, maravilharam-se com o mesmo reflexo da Lua sobre o Tejo, e sempre que chegaram à estação de Santa Apolónia»

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«Longe de imaginar o quanto aquela notícia nos dizia respeito, e os efeitos devastadores que teria nas nossas vidas, demorei a adormecer. Ainda hoje, trinta anos depois, seis internamentos depois, centenas de caixas de comprimidos depois, sessões de psicanálise, mesas de pé-de-galo, sanatórios, termas, casas de repouso, choques eléctricos, dou por mim deitado na cama, de olhos pregados no tecto, a pensar nesses dois pobres maquinistas, frente a frente, sem tempo para uma travagem de emergência, sem tempo para saltarem das locomotivas e rolarem como cowboy sobre um manto de feno, sem tempo sequer para se questionarem acerca das circunstâncias insólitas, colossais, em que se encontravam, aos comandos dos seus exércitos indomáveis, semelhantes a dois generais inimigos que se reunissem entre as linhas avançadas para negociações de última hora, para uma tentativa de entendimento que evitasse a derrota e a chacina, e, porém, absolutamente conscientes da sua impotência para anularem o confronto, para o adiarem até, nem que fosse por breves segundos. escassíssimos segundos, os segundos suficientes para dizerem, em desolado uníssono: estamos metidos numa alhada!
Poderiam depois trocar duas ou três palavras de conforto, histórias antigas, o amor aos comboios. Talvez um deles, o de temperamento mais caloroso, começasse por confessar que, em miúdos, ele e o irmão se entretinham a apanhar escaravelhos, gafanhotos, lesmas, grilos, lagartixas, toda a espécie de bichos que saltam ou rastejam, e que, quais vítimas de um sacrifício que aplacasse a fúria dos deuses, os colavam com resina ao ferro dos carris, momentos antes da passagem do Rápido proveniente da Guarda ou dos vagões carregados de volfrâmio das minas da Panasqueira, comboios demasiado importantes para efectuarem paragem no pequeno apeadeiro cujo nome inscrito em azulejos testemunhava o domínio islâmico sobre aquelas terras até meados do século XI, altura em que os devotos das santas chagas de Cristo, sob os comandos de Fernando I, rei de Leão e Castela, expulsaram os Sarracenos da faixa circunscrita pelos rios Douro e Mondego. Novecentos anos volvidos sobre tão ilustre peleja, seria nesse apeadeiro que o pai do maquinista, humilde funcionário dos Correios e amante de banda desenhada, aguardaria, duas vezes por semana, a chegada do Regional que vinha de Lisboa e, em troca de dez ou quinze tostões, receberia das mãos do revisor uma revista com as mais recentes aventuras do Capitão Meia-Noite, do Flash Gordon, do Mandrake, do Barão de Dorset, do Kit Carson.
Chegado a este ponto, é bem possível que o maquinista fizesse uma pausa, uma dessas pausas que, quando acompanhadas de um movimento descendente do olhar, quase sempre antecedem uma ligeira inflexão na voz, colocando-a dois ou três tons mais abaixo, e revelam, por parte de quem se prepara para prosseguir o rumo de uma confidência, o receio de vir a ser condenado pelo juízo moral do interlocutor. Claro que este receio pode adquirir diferentes matizes e significados, dependendo não só da matéria de que se constitui a confidência, mas, sobretudo, da relação que já existe, ou está prestes a existir, entre quem fala e quem ouve. No caso destes maquinistas, estamos perante dois estranhos, dois homens que não se conhecem; no entanto, é provável que se tenham cruzado inúmeras vezes, a altíssimas velocidades, em circunstâncias que não permitiram mais do que um simples aceno; é provável até que tenham ambos a vaga memória de um encontro fortuito ocorrido há muitos anos, ao balcão de um desses cafés que existem no interior das grandes estações terminais; ou numa casa de banho pública, aliviando-se em urinóis adjacentes, trocando desabafos acerca do cheiro a mijo, do tempo, do futebol, enquanto os olhos repousavam, distraídos, na superfície polida da pedra mármore. Durante anos partilharam as mesmas linhas-férreas; viram repetidamente as mesmas paisagens; tentaram cumprir à risca os mesmos horários e os mesmos procedimentos de segurança; sentaram-se com zelo aos comandos das mesmas locomotivas, e os gestos mecanizados de um foram os gestos mecanizados do outro; em certas noites de Maio, junto aos desfiladeiros das Portas de Ródão, maravilharam-se com o mesmo reflexo da Lua sobre o Tejo, e sempre que chegaram à estação de Santa Apolónia, a abarrotar de Amélias e magalas, sentiram a mesma melancolia, a mesma vontade imensa e inexplicável de chorar». In João Ricardo Pedro, Um Postal de Detroit, 2016, Publicações dom Quixote, Leya, 2016, ISBN 978-972-205-949-7.

Cortesia PdonQuixote/JDACT