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e wikipedia
«Muitos
sons podiam ser ouvidos durante o amanhecer na Fazenda Falcão Vermelho. O
relincho dos cavalos, o mugir do gado, o cantarolar do galo, os primeiros trabalhadores
acordando e se preparando para mais um dia na lida. Mas não o que o velho
cozinheiro Cicinho ouviu ao se dirigir para o grande refeitório num galpão ao
lado de uma das margens do sulco que cortava as terras verdejantes. O sol nem
tinha nascido, mas todas as manhãs ele fazia aquele trajecto, saindo da casa em
que morava junto das outras reservadas aos empregados, até ao refeitório onde
era o cozinheiro oficial e preparava o café da manhã. Mesmo tendo famílias ali,
o café da manhã e o almoço eram oferecidos por Mário Falcão para que todos
tivessem uma alimentação decente durante o trabalho duro. Além de todos os
direitos trabalhistas reservados e aquela alimentação, o salário era digno e
havia também escola primária para os filhos dos funcionários. Durante muitos
anos Cicinho trabalhou cuidando dos cavalos, mas uma queda deixou-o manco e com
dor nos quadris. Foi transferido para a cozinha, já que sempre gostou de
preparar as refeições quando ficavam longe por alguns dias nos campos
remarcando o gado. Para ele foi bom, pois teria morrido se não tivesse nada
para fazer. Aquele dia frio de Junho seria como outro qualquer e ele caminhava
pensando se seu ajudante, Rosendo, teria já preparado a massa do pão e colocado
para assar. Rosendo era maluquinho, nasceu com problemas mentais e ria de tudo.
Não dava para lidar com gado, se atrapalhava todo. Tinha vinte e um anos e era
órfão. Todos acharam que seria mandado embora, pois não tinha utilidade ali.
Mas Theo Falcão, o filho mais velho da família, de vinte e cinco anos, arrumou
uma ocupação para ele como ajudante de cozinheiro no refeitório. Para surpresa
de todos e até de Cicinho, Rosendo mostrou-se um padeiro de mão cheia. E óptimo
cozinheiro. Ele o ajudava muito. O duro era aguentar as suas risadas a manhã
inteira, sem mais nem menos. Cicinho sacudiu a cabeça, paciente. E foi quando
ouviu o choro estridente, que o fez parar. Passou os olhos em volta dos campos
e árvores, do caminho de terra batida até o refeitório não muito longe. À
direita, mais para frente, podia se ver o enorme casarão branco da residência
dos Falcão, suas telhas vermelhas recortando o céu da madrugada que começava a
ganhar luz. E foi então que ele viu a trouxinha branca se arrastando em sua
lateral, perto da entrada do refeitório. Sua visão já não era boa aos 72 anos, mas
pareceu uma criança. Franziu o sobrolho e, mancando, se aproximou dela,
tentando lembrar qual dos empregados tinha um filho tão pequeno. A criança berrou
de novo, um som que demonstrava medo, desespero, sofrimento: mãe! Mãe! Foi o
mais rápido possível até ela e viu que era uma menina, descalça, com uma
camisola branca suja de barro, cabelos ruivos desgrenhados até aos ombros.
Tomou cuidado para não assustá-la: olá, menina... Ah... Gritou, virando-se de
um pulo, olhando-o apavorada. Seu rosto com sardas estava manchado de lágrimas
e barro, como se tivesse estado no chão e se esfregado nele. Voltou a chorar: quero
a mãe... Claro, vamos procurar a sua mãe. Agachou-se um pouco, seus ossos
rangendo, a droga do quadril doendo. Preocupado, percebeu que a criança devia
ter entre dois ou três anos e parecia muito assustada. Evitou tocá-la para que
não saísse correndo, pois era óbvio que estava com muito medo. Onde está a sua mãe?
Sabe o nome dela? mãe... Esfregou os olhinhos, chorando muito, estremecendo.
Ele se encheu de pena e estendeu a mão. Vem com o avô, vou ajudar-te a
encontrar a sua mãe. Ela fitou-o com os olhos castanhos claros vermelhos e
inchados, molhados. Devia ser uma menina boazinha, pois deu uns passos em sua
direcção. Mas mesmo assim continuava assustada, soluçando, o catarro escorrendo
do nariz. Na mesma hora Cicinho tirou seu lenço do bolso e, cuidadoso, limpou
seu rostinho. Ela ficou quieta, tão pequenininha e suja que dava pena. Ele
sempre amou crianças, pena que nunca casou nem teve filhos e netos. Guardou o
lenço de volta e segurou a mãozinha dela, garantindo com carinho: vamos
procurar a sua mãe. Sabe o nome dela? Parecia confusa. Murmurou: mãe... Vivi...
Sua mãe é Vivi? Quero a Vivi... Voltou a chorar. Vem aqui. Compadecido e vendo
a garotinha descalça no chão com pedrinhas, ele pouco ligou para as suas dores.
Abaixou-se com dificuldade, pegou-a no colo e, manquando, voltou pelo caminho,
em direcção ao casarão da fazenda. Ela se segurou em seu ombro, fungando, tão
pequenininha e perdida que dava pena. Conta p’ra mim o nome do seu pai...» In Nana
Pauvolih, Proibida, Série Segredos, Brasil, Wikipedia.