sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Proibida. Nana Pauvolih. «A criança berrou de novo, um som que demonstrava medo, desespero, sofrimento: mãe! Mãe! Foi o mais rápido possível até ela e viu que era uma menina, descalça, com uma camisola branca suja de barro»


jdact e wikipedia

«Muitos sons podiam ser ouvidos durante o amanhecer na Fazenda Falcão Vermelho. O relincho dos cavalos, o mugir do gado, o cantarolar do galo, os primeiros trabalhadores acordando e se preparando para mais um dia na lida. Mas não o que o velho cozinheiro Cicinho ouviu ao se dirigir para o grande refeitório num galpão ao lado de uma das margens do sulco que cortava as terras verdejantes. O sol nem tinha nascido, mas todas as manhãs ele fazia aquele trajecto, saindo da casa em que morava junto das outras reservadas aos empregados, até ao refeitório onde era o cozinheiro oficial e preparava o café da manhã. Mesmo tendo famílias ali, o café da manhã e o almoço eram oferecidos por Mário Falcão para que todos tivessem uma alimentação decente durante o trabalho duro. Além de todos os direitos trabalhistas reservados e aquela alimentação, o salário era digno e havia também escola primária para os filhos dos funcionários. Durante muitos anos Cicinho trabalhou cuidando dos cavalos, mas uma queda deixou-o manco e com dor nos quadris. Foi transferido para a cozinha, já que sempre gostou de preparar as refeições quando ficavam longe por alguns dias nos campos remarcando o gado. Para ele foi bom, pois teria morrido se não tivesse nada para fazer. Aquele dia frio de Junho seria como outro qualquer e ele caminhava pensando se seu ajudante, Rosendo, teria já preparado a massa do pão e colocado para assar. Rosendo era maluquinho, nasceu com problemas mentais e ria de tudo. Não dava para lidar com gado, se atrapalhava todo. Tinha vinte e um anos e era órfão. Todos acharam que seria mandado embora, pois não tinha utilidade ali. Mas Theo Falcão, o filho mais velho da família, de vinte e cinco anos, arrumou uma ocupação para ele como ajudante de cozinheiro no refeitório. Para surpresa de todos e até de Cicinho, Rosendo mostrou-se um padeiro de mão cheia. E óptimo cozinheiro. Ele o ajudava muito. O duro era aguentar as suas risadas a manhã inteira, sem mais nem menos. Cicinho sacudiu a cabeça, paciente. E foi quando ouviu o choro estridente, que o fez parar. Passou os olhos em volta dos campos e árvores, do caminho de terra batida até o refeitório não muito longe. À direita, mais para frente, podia se ver o enorme casarão branco da residência dos Falcão, suas telhas vermelhas recortando o céu da madrugada que começava a ganhar luz. E foi então que ele viu a trouxinha branca se arrastando em sua lateral, perto da entrada do refeitório. Sua visão já não era boa aos 72 anos, mas pareceu uma criança. Franziu o sobrolho e, mancando, se aproximou dela, tentando lembrar qual dos empregados tinha um filho tão pequeno. A criança berrou de novo, um som que demonstrava medo, desespero, sofrimento: mãe! Mãe! Foi o mais rápido possível até ela e viu que era uma menina, descalça, com uma camisola branca suja de barro, cabelos ruivos desgrenhados até aos ombros. Tomou cuidado para não assustá-la: olá, menina... Ah... Gritou, virando-se de um pulo, olhando-o apavorada. Seu rosto com sardas estava manchado de lágrimas e barro, como se tivesse estado no chão e se esfregado nele. Voltou a chorar: quero a mãe... Claro, vamos procurar a sua mãe. Agachou-se um pouco, seus ossos rangendo, a droga do quadril doendo. Preocupado, percebeu que a criança devia ter entre dois ou três anos e parecia muito assustada. Evitou tocá-la para que não saísse correndo, pois era óbvio que estava com muito medo. Onde está a sua mãe? Sabe o nome dela? mãe... Esfregou os olhinhos, chorando muito, estremecendo. Ele se encheu de pena e estendeu a mão. Vem com o avô, vou ajudar-te a encontrar a sua mãe. Ela fitou-o com os olhos castanhos claros vermelhos e inchados, molhados. Devia ser uma menina boazinha, pois deu uns passos em sua direcção. Mas mesmo assim continuava assustada, soluçando, o catarro escorrendo do nariz. Na mesma hora Cicinho tirou seu lenço do bolso e, cuidadoso, limpou seu rostinho. Ela ficou quieta, tão pequenininha e suja que dava pena. Ele sempre amou crianças, pena que nunca casou nem teve filhos e netos. Guardou o lenço de volta e segurou a mãozinha dela, garantindo com carinho: vamos procurar a sua mãe. Sabe o nome dela? Parecia confusa. Murmurou: mãe... Vivi... Sua mãe é Vivi? Quero a Vivi... Voltou a chorar. Vem aqui. Compadecido e vendo a garotinha descalça no chão com pedrinhas, ele pouco ligou para as suas dores. Abaixou-se com dificuldade, pegou-a no colo e, manquando, voltou pelo caminho, em direcção ao casarão da fazenda. Ela se segurou em seu ombro, fungando, tão pequenininha e perdida que dava pena. Conta p’ra mim o nome do seu pai...» In Nana Pauvolih, Proibida, Série Segredos, Brasil, Wikipedia.

Cortesia de Wikipedia