Cortesia
de wikipedia
A
assembleia dos templários
«(…)
Tomada a cidade pelas forças superiores dos inimigos, fechei-me na cidadela da
fortaleza, decidido a resistir até ao fim, e assim o fiz; mas quando de espada
em punho defendia a brecha, fui ferido por uma pedrada numa perna. Caí sem
sentidos, e quando os recuperei a fortaleza e eu tínhamos caído em poder dos
franceses. Fui tratado com singular cortesia por aqueles guerreiros,
acostumados a apreciar a valentia dos inimigos. Curei-me, e por ordem do senhor
de Foix fui transportado para o meu palácio paterno, na Biscaia. Ali tive de
permanecer longo tempo, porque o meu ferimento tinha sido tão mal curado, que
foi necessário tornarem-me a desmanchar a perna para a arranjar de novo. Perdoai-me,
meus irmãos, se vos roubo o tempo, falando-vos destes miseráveis tormentos que
sofri, mas preciso dizer-vos tudo para vos poder explicar a maneira miraculosa
por que se efetuou a mudança da minha alma. Eu tinha, como vós bem sabeis,
todos os predicados para ser um cavaleiro belo e elegante. Imaginai por isso
como eu ficaria quando soube que aquele ferimento me condenava a ficar coxo
para toda a vida!... Adeus esplendor do vestuário, pompas daí pedrarias, amor
das damas!.. Adeus, volteios rápidos da dança e todas as alegrias que o
prestígio da beleza proporciona aos homens! Podeis crer, meus irmãos, que nenhum
suplício humano se poderia equiparar ao que eu sofri quando me falaram daquela
desgraça, que agora considero como uma bênção do céu. Pareceu-me que a causa do
mal era um osso da perna que se me tinha deslocado, e por isso quis que mo
tirassem, e apesar das dores atrozes que isso me causou, consenti que os médicos
mo serrassem. Pois vendo que apesar de tudo uma perna me ficara mais curta do que
a outra, submeti-me a outro tormento ainda mais horrível: apliquei à perna mais
curta um aparelho que a cada instante lhe imprimia um esticamento, que me
causava dores atrozes. Os ossos estalavam, as dores faziam-me emperlar um suor
frio à raiz dos cabelos, mas tudo foi inútil: fiquei coxo.
Durante
a minha doença, quis o Senhor que me viesse o desejo de ler, e pedi que me trouxessem
romances de cavalaria. A Providência determinou que em vez desses livros me viessem
às mãos a Vida de Jesus Cristo e Fios Sanctorum. Li-os, ao princípio com repugnância,
depois com prazer e afinal com entusiasmo. Quando a minha perna estava curada,
bem outro era também o estado do meu espírito: eu já não era um galanteador vaidoso,
um soldado sanguinário. Era um cristão. Aquela narrativa, que hoje em dia
enfastiaria soberanamente qualquer auditório, por menos ilustrado que fosse,
era, pelo contrário, escutada por aquela assembleia com uma atenção sincera e
quase febril. Com efeito, naquele tempo ninguém olhava com indiferença as
coisas da religião. O grande movimento, que se produzira na Alemanha, suprimira
os indiferentes e dividira-os todos em duas classes bem distintas: uma, que era
constituída pelos que respeitavam e obedeciam à Igreja romana, confessando-se
seus campeões; outra, que era formada pelos que se apresentavam para abalar as
bases do edifício do pontificado, fazendo ruir com ele todas as velhas
instituições que tinham o apoio e consagração da Igreja.
Ser
indiferente naqueles tempos aos assuntos religiosos seria tão impossível como
nos ditosos dias de 1848 conservar-se estranho aos movimentos políticos. Era
preciso tomar-se parte naqueles ou nestes; ser por Lutero ou por Clemente, pela
autoridade eclesiástica, ou pela liberdade do pensamento. De uma e outra parte,
a fé estava de tal modo sobre-excitada, que nenhuma força humana poderia
impedir que as discussões fossem tempestuosas, violentas e irreprimíveis. Como acontecera
nos primeiros tempos do Cristianismo, o apostolado fazia-se à custa do
martírio. Paris, Madrid, Roma, queimavam os protestantes; Londres e Genebra
perseguiam e destruíam os católicos. E por isso aquela narrativa ascética de
Loiola correspondia tão exactamente às preocupações da ocasião, às agonias
daquelas mudanças constantes, que todos seguiam a manifestação daquele
sentimento religioso com o mesmo interesse que hoje despertaria o mais
comovente drama de ambições ou de amor. Continua! Continua!, gritaram de todos
os lados. Inácio de Loiola sentia que todos os olhares o fitavam com viva
atenção; e a única paixão que o dominava, a de se impôr aos outros, quer fosse
pela admiração quer pelo medo, achava-se assim completamente satisfeita nele. Aquele
convertido não tinha mudado nada quanto ao fundo do coração. Era sempre o arcanjo
fulminado, que levantava orgulhosamente a fronte para o céu, vencido mas não abatido
pelo raio de Deus: a sua ambição, assim tão duramente desviada dos esplendores mundanos,
tinha mudado de direcção, mas nem por isso tinha diminuído.
Quando
eu senti que a graça divina despertava em mim os sentimentos adormecidos, prosseguiu
com voz mais segura o peregrino, voltei-me para a Virgem, e diante do altar dela
fiz voto de castidade. Depois resolvi fazer a vigília de armas, que tem de
fazer todo o cavaleiro, antes que possa cingir o sagrado cinto da ordem. Uma
noite inteira passei diante do altar, orando, chorando, consagrando-me todo à
milícia de Cristo. No dia seguinte pendurei a minha espada num pilar da igreja,
dei a um pobre os meus trajes de cavaleiro, cingi o corpo com uma corda,
vesti-me de burel, e dirigi-me a pé para Manresa. Que mais vos direi, meus
irmãos? Amparado por uma fé sobre-humana, castiguei o corpo com mil penas e
tormentos; infligi-me as mais cruéis privações, sem que nada pudesse alterar a
minha saúde de ferro. Cingi os rins de cilícios; dormi na terra fria, mendiguei
de porta em porta, e julgava-me feliz quando recebia mau tratos ou injúrias,
que vinham aumentar o valor da minha expiação. Finalmente, a seiscentos passos
de Manresa encontrei uma gruta oculta a todos os olhares. Foi essa que eu
escolhi para minha habitação; aí recebi os tormentos e as privações como um
favor do céu; aí experimentei as doçuras do êxtase divino e o langor da morte
aparente. Enfim, meus irmãos, foi aí que... Neste ponto Inácio fez uma pausa,
como quem se assustava que ia dizer. Fala, fala!, gritaram de todos os lados». In
Ernesto Mezzabota, O Papa Negro, 1947, tradução de Adolfo Portela, Brasil, Exilado dos Livros, Epub, 2001, ISBN
858-671-001-6.
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