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A sociedade romana é feita para e pelo cidadão livre. Assim, a noção de masculinidade
é central. Veremos que esta noção faz referência a um conjunto de valores e de
ideais que corresponde a uma tradição cultural, e não a um dado biológico. Paul
Veyne revolucionou os estudos sobre a sexualidade antiga ao analisar o
comportamento sexual do cidadão livre como uma bissexualidade activa que supõe
a valorização de uma sexualidade viril e conquistadora. Formulou também a
hipótese de uma homossexualidade dividida entre passividade (sexualidade
censurada) e actividade (sexualidade valorizada). Esta análise foi recentemente
colocada em causa pelos trabalhos de Thierry Éloi e Florence Dupont, para quem
tal hipótese parece demasiado moderna. Veremos em que medida essa análise
continua válida, numa primeira parte dedicada ao modelo fálico da masculinidade
social do cidadão livre. A identidade masculina assenta numa oposição binária:
por um lado, os homens, os machos (uiri), aqueles que em Roma detêm o poder, os
que penetram; por outro, todos os outros, aqueles que não possuem o poder, os
que são penetrados, as mulheres, os rapazes, os escravos.
Roma
não possui um modelo igualitário no domínio das relações sexuais. Os parceiros
dos homens são sempre marcados como diferentes de forma significativa, ainda
que pertençam ao mesmo sexo biológico. Esta estrutura hierárquica mostra que as
práticas sexuais reflectem claramente as relações de poder entre as diferentes
camadas da sociedade. Os grupos subordinados à elite masculina romana dominante,
os plebeus, as mulheres, as crianças, os libertos, os escravos, são
marginalizados e, praticamente excluídos do olhar dela. Além disso, as mulheres
não deixaram, por assim dizer, fontes escritas. É através de um olhar masculino
que podemos entrever uma prática que diz respeito tanto ao homem como à mulher.
Quando uma mulher fala sobre um assunto tão íntimo, é um homem que a faz falar.
A voz e o olhar dominantes, em literatura e em arte, não só são masculinos,
como também pertencem globalmente, com algumas excepções, a um cidadão romano
que faz parte da elite social, italiano e de meia idade. É essa voz e esse
olhar que tentaremos apreender.
O
modelo do cidadão viril
A sociedade
romana está construída sobre uma hierarquia estrita que assenta na diferença
dos sexos biológicos e dos estatutos sociais e que dá origem a uma divisão dos papéis
sexuais de cada pessoa. O acto sexual não é, em si mesmo, bom ou mau. O seu valor
moral depende do objecto escolhido como parceiro e do papel desempenhado no interior
da relação sexual. O estatuto sexual de cada indivíduo está ligado ao seu estatuto
social. A cidade romana não espera o mesmo comportamento sexual de um homem livre,
de uma matrona, de um(a) prostituto(a), de uma vestal, de um(a) liberto(a) ou de
um(a) escravo(a). A ausência de castidade, ou seja, a prática de relações sexuais
antes do casamento ou fora do casamento, é tolerada relativamente a um homem, mas,
para uma mulher, trata-se de algo extremamente grave. A sociedade permite e até
encoraja os adolescentes a adquirir uma experiência sexual, ao mesmo tempo que
exige que as raparigas casadoiras preservem a sua virgindade. As relações extraconjugais
são aceites para os homens casados, ao passo que as esposas adúlteras são
condenadas. Esta dupla exigência de continência para as mulheres e de conquista
viril para os homens é resolvida graças à existência de um grupo de mulheres que
pertencem a uma outra classe social que não a do homem ou que são prostitutas. O
homem pode ter relações sexuais com as suas próprias escravas, com prostitutas,
com mulheres respeitáveis e não casadas de uma classe social inferior, com as quais
pode manter uma ligação durável. Por outro lado, deve abster-se das esposas e das
mulheres da sua própria classe; caso se verifique o contrário, tal situação constitui
a maior transgressão social. É ilícito ter relações sexuais com uma matrona quando
não se é o seu esposo legítimo, com uma virgem ou com um rapaz de condição livre,
ao passo que com prostitutas, escravos e libertos, tanto homens como mulheres, isso
já é permitido e tolerado». In Géraldine Puccini-Delbey, A vida sexual
na Roma Antiga, 2007, Edições Texto e Grafia, tradução de Tiago Marques, 2010,
Lisboa, ISBN 978-989-828-515-7.
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