segunda-feira, 12 de setembro de 2016

O Meças. J. Rentes de Carvalho. «Nunca ouviu falar, nem sabe o que seja, carvão só conhece o de choça, que ele faz com lenha de carrasco, castanho e sobreiro. Mas não pergunta»

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«(…) O sono é morte súbita de que irá ressuscitar à cantada do galo, em prece para que na fogueira apagada seja muito o carvão. Uma côdea, um gole de água, por ser rotina de toda a vida mal dá conta que albarda as bestas, aperta as cilhas, os cabrestos, abre a porta. O dia rompe quando avista a sepultura, e o palpite é bom, os galhos estão na mesma. Reza agradecido. Bom é também o carvão de brasas medianas, o que paga melhor, gastam-no as mulheres nos ferros de passar; nas braseiras e nos fogareiros. Seis sacas enche, das que guardou do adubo, carga leve, três em cada besta. Fracas como andam, malcomidas, com mais peso não aguentariam as nove 1éguas de ida e volta e o tempo que vai perder nas ruas da vi1a, pára aqui, pára além, batendo as aldrabas, chamando, rouco de apregoar Brasas! Quem quer brasas!
O dia passa, às tantas só pergunta nas casas onde costuma ter freguesia, a meio da tarde vendeu duas sacas, trinta mil réis. Um mal-encarado diz que lhe compra uma se mear o preço. Ele responde que não pode, e o homem vira-lhe costas com um então guarda-as! Apiedada, a viúva deu-lhe uma tigela de caldo e água para as bestas, mas brasas tem de sobra, que no estio pouco gasta. Fora isso, o carvão de pedra da mercearia dá bom calor e é mais em conta. Nunca ouviu falar, nem sabe o que seja, carvão só conhece o de choça, que ele faz com lenha de carrasco, castanho e sobreiro. Mas não pergunta. Agradece o caldo, seja pelas almas de quem lá tem, o Senhor a favoreça, e ela diz Deus te acompanhe.
Quando reparou no que tinha andado, já não se viam as casas nem ladraram os cães, o negrume viera de repente, mas de olhos fechados andaria o caminho que era o do seu único longe. Uma quebreira, ardume no peito, a oura a embaraçar-lhe o passo, queixoso de não haver por ali fio de água onde acalme a sede, nem porta a que possa bater. Quis sentar-se na borda da rodeira, mas a fraqueza pôde mais, julgando que se endireitava rebolou, caiu de bruços num derradeiro esforço virou a cara, anojado do pó que se lhe colava à boca. Foi esmorecendo e finou-se em paz, os que de madrugada o encontraram quase tinham passado adiante, julgando que dormia.
Recorda que trouxeram o homem atravessado na albarda de um jerico que mal aguentava o peso do morto e do que o segurava. Recorda bem tê-lo visto depois no esquife dos pobres, coberto por um 1ençol remendado na ourela, e que as mulheres tinham ido pela ladeira em busca de flores, para que não fosse a enterrar sem ao menos um raminho. Noutra vida? Outra era? Em lugar sem nome, tempo sem história? Visita ao Purgatório? Sufocando num escuro de pesadelo revive a hora da tarde, a ventania a sarilhar poeira na rua sem calçada, casas de pedra solta, uma ou outra coberta do barro amarelado que pertence nas aldeias de Castela. Longe demais para que distinga se é homem ou mulher, passa um vulto, outro, um terceiro curvado sob um molho de galhos, os braços erguidos a segurar o fardo». In J. Rentes de Carvalho, O Meças, Quetzal Editores, Língua Comum, Lisboa, 2016, ISBN 978-989-722-286-3.

Cortesia de QuetzalE/JDACT