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Teu marido está no Egipto. A velha
alcoviteira atormentava, por encargo de um apaixonado, o sossego de uma jovem,
bela e temporariamente única senhora de Cós, e não encontrava melhor arma do
que acenar-lhe a imagem do país mais tentacular do mundo: Egipto!, espicaçava
ela, não há no mundo coisa que não esteja entre os tesouros daquele país: ginásios,
espectáculos, filósofos, dinheiro, rapazes, o recinto sagrado dos deuses irmãos,
o rei, homem muito generoso, e mais o Museu, vinho, e toda a abundância que se
pode desejar, e mulheres, mais numerosas do que as estrelas que estão no céu, e
belas, belas como as deusas que foram a Paris para o famoso julgamento. Antes
de citar o último e decisivo factor, aquele que deveria vencer as resistências
e induzir a mulher a se entregar, ela também, a uma distracção, a vulgar
alcoviteira parece perder-se numa enumeração quase desvairada, apenas aqui e
ali pontilhada de elementos alarmantes: assim, dos ginásios passa para os filósofos
e, logo a seguir, consequência quase natural após ter nomeado esses ambíguos frequentadores
de adolescentes, menciona os rapazes; mas depois passa, divagando, para o
templo de Ptolomeu e Arsinoé, para o rei Ptolomeu, até o Museu, para assestar,
por fim, o golpe que crê definitivo: o vinho e as mulheres; mulheres tão
numerosas e belas que não resta margem de dúvidas quanto ao recreativo emprego
do tempo desse marido distante, que há dez meses não envia notícias. Nas festas
de Adónis, em Alexandria, abria-se ao público o palácio real e uma torrente
humana era admitida em alguns parques do imenso bairro. E os cantos que as
mulheres, naquela ocasião, entoavam em honra a Adónis, com as cabeleiras
soltas, as vestes desalinhadas e os seios descobertos, levá-lo-emos às ondas
que espumam na praia, se conhecidos pela senhora de Cós, talvez a tivessem
preocupado ainda mais. Aquela festa era uma das raras ocasiões em que se abria
o palácio. A cidade tem a forma de uma clâmide, dizem os antigos viajantes a
respeito de Alexandria. Nesse rectângulo quase perfeito, entre o mar e o lago
Mareótis, o bairro do palácio ocupa um quarto, talvez até um terço, do total. É
um palácio que veio se ampliando com o tempo: já Alexandre o quisera grandioso,
e, a seguir, cada soberano lhe acrescentou um novo edifício ou um novo
monumento. Todo o bairro de Brúquion foi progressivamente ocupado pelo palácio
em expansão. O palácio se projectava sobre o mar, protegido por um dique. Era
uma autêntica fortaleza, concebida também como defesa extrema em casos de excepcional
perigo. Foi o que se viu na guerra de Alexandria, quando César, com poucos
homens, por vários dias, conseguiu resistir ao assédio das armadas egípcias,
entrincheirado no palácio. O modelo persa do palácio inacessível (excepto, por privilégio
hereditário, aos descendentes das sete famílias que haviam vencido a conjura
dos magos) passara, através de Alexandre, para a realeza helénica. No Egipto,
na corte ptolomaica, a ele se somava o remoto modelo faraónico. O que quer que
houvesse nos palácios do bairro real devia ser vagamente conhecido no exterior.
Por exemplo, sabia-se que lá também devia estar o Museu, arrolado pela
alcoviteira de Cós entre as maravilhas de Alexandria, talvez ignorando o que seria
ele. Lá ainda se encontravam preciosas colecções de livros de propriedade do
rei, os livros régios, como os chamava Aristeu, um escritor judeu com uma certa
familiaridade com o palácio e a biblioteca». In Luciano Canfora, A Biblioteca Desaparecida, 1986, Companhia das
Letras, 1989, ISBN 978-857-164-051-1.
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