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Lusbuna.
Verão de 1142
«(…)
Zubaida libertou-a. Pela segunda vez nesse dia, presenteou-a com um dos seus
raros sorrisos e disse, enquanto lhe afagava os caracóis: não tenhas medo! Deus
nunca te abandonará! O sol de Dezembro mais não era do que uma estrela distante
e fria a espalhar a sua luz desmaiada na praça da catedral de Colónia, onde
decorria o mercado. Depois de ter passado horas a suar na ferraria, Konrad
aconchegava-se enregelado na sua capa de lã grosseira. Ainda assim, o frio
evitava que chapinhasse em lama, ao não permitir que a neve derretesse. Uma
caneca de vinho quente, temperado com canela, cravinho e pimenta,
aquecer-lhe-ia as entranhas... mas não seria melhor poupar o dinheiro? Na
verdade, um ajudante de ferreiro nem se podia queixar, tinha mais na sua bolsa
do que a maioria do povo. Konrad alimentava, contudo, planos ambiciosos e
precisava de todas as moedas que ganhasse. Reparou num grupo de fidalgos que
segurava canecas fumegantes nas mãos e o cinzento azulado dos seus olhos
congelou, como se tivesse engolido a neve. Munidos de mantos forrados a peles,
os fidalgos não precisavam de se encolher do frio. Barretes, igualmente
forrados, protegiam-lhes as cabeças e as botas grossas, ao contrário das suas
sapatas finas de couro de cabra, evitavam que o gelo se lhes entranhasse nos
pés. Riam-se, satisfeitos. Konrad cerrou os dentes e afastou-se. Porque é que o
destino lhe fora tão cruel? Também ele nascera no seio de uma família fidalga
e, no entanto, era obrigado a fabricar armas e a ferrar os cavalos dos ricos e
poderosos para sobreviver. Não fora seu pai um parvo, que perdera o património
num torneio de cavalaria! Konrad não se lembrava bem de sua mãe, morrera tinha
ele cinco anos, nem da irmã, que não sobrevivera à infância. O seu pai, Lothar,
um cavaleiro com castelo próprio, começou, depois da morte prematura da esposa,
a beber e a desleixar-se nas suas obrigações para com o senhor a quem prestava
vassalagem. Com oito anos, Konrad mudou-se, como era hábito, para o castelo de
um nobre conhecido, a fim de iniciar a sua educação. Começou como pajem, com
catorze anos passou a escudeiro e com vinte foi armado cavaleiro. Entretanto, o
pai tornou a casar, o que restabeleceu a ordem na sua vida. A nova esposa
deu-lhe outro filho, Johann, mas mais uma vez o azar bateu à porta da família.
Depois de alguns desmanchos, a senhora morreu ao dar à luz uma criança, que não
sobreviveu sequer uma semana, e Lothar tornou a deixar-se dominar pela bebida.
Há
três anos atrás, cheio de dívidas, o homem apostara o seu património num
torneio de cavalaria e perdera tudo. Morrera pouco depois, ao envolver-se numa
rixa de taberna, onde fora afogar o seu desespero. Konrad, que acabara de ser
armado cavaleiro, viu-se de um momento para o outro destituído de herança. Ele
e o irmão foram rejeitados pelo próprio nobre que o educara, não tinham sequer
onde morar e viram-se obrigados a pedir ajuda a Otmar, o melhor ferreiro de
Colónia, que havia trabalhado para o pai. Otmar ferrava os cavalos dos melhores
clientes, mas a sua especialidade eram as armas. Usava um aço especial para
espadas, um segredo só dele, que as fazia muito cobiçadas. Também manufacturava
cotas de malha, um trabalho de filigrana, que poucos dominavam: milhares de
pequenas argolas eram produzidas uma a uma e depois fundidas ou entrelaçadas
umas nas outras. Otmar não hesitou em empregar o atlético Konrad, mas para o
irmão magrinho, de doze anos, não havia trabalho na sua oficina. A única
solução que o mais velho encontrou foi confiar o rapazito à guarda dos monges
beneditinos de Deutz, mosteiro situado na margem direita do Reno, em frente à
cidade de Colónia. Os monges prontificaram-se a ficar com Johann, na condição
de que o rapaz trabalhasse em todo o lado, onde dele precisassem, fosse na
cozinha, na ervanária, nos estábulos, no hospital ou na casa de hóspedes. A
Konrad custou-lhe deixar o irmão entre os monges, mas estava decidido a, assim
que pudesse, o ir buscar e fazer dele um bom cavaleiro.
Depois
da sua volta pelo mercado, Konrad regressou à ferraria. Aí, libertou-se da
capa, da túnica e até da camisa interior, pôs o avental de couro em cima do
tronco nu e amarrou os cabelos castanho-claros num rabo-de-cavalo. Com a ajuda
de uma tenaz, tirou o pedaço de ferro, que antes da pausa do almoço deixara no
forno e começou a martelá-lo. Tudo fez sem dizer palavra e Otmar comentou: a
volta pelo mercado parece que não te fez muito bem! Konrad não respondeu.
Continuou a martelar aquilo que mais tarde seria a ponta de uma lança, como se
quisesse desfazer a bigorna que lhe servia de apoio. O ferreiro trocou um olhar
com os seus outros dois ajudantes e perguntou: tornaste a sonhar com coisas que
não podes pagar? O jovem parou de martelar e fitou o mestre. Os seus olhos, que
na parca iluminação da oficina eram cinzentos como a fuligem, escondiam a
revolta que o devorava, e ele limitou-se a replicar: isso é comigo. Otmar
abanou a cabeça: devias aceitar o teu destino, homem. Enquanto sonhares com uma
vida de cavaleiro glorioso, não encontrarás paz. Konrad respirou fundo, a fim
de não agredir o único homem que o ajudara na fase mais difícil da sua vida, e
retomou o seu trabalho. Mas o mestre insistiu: o teu futuro não é tão negro
como isso. És forte, esperto e trabalhador, podes ser ainda melhor ferreiro do
que eu. E tu sabes que eu deposito a máxima confiança em ti... Konrad sabia
aonde ele queria chegar». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas,
Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.
Cortesia de
Ésquilo/JDACT