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Lusbuna.
Verão de 1142
«(…)
A própria mãe de Aischa só se convertera ao islamismo ao casar com o mercador
mouro, trocando o nome de Beatriz por Zubaida. Decisão que a mulher tomara de
coração pesado, pois assistira à destruição do senhorio de seu pai e à matança
da sua família pelos mouros. Só ela e uma irmã haviam sobrevivido.
Transformadas em escravas, tinham sido postas à venda no mercado de Lusbuna,
mas a irmã morrera de febre antes de ser vendida. O mercador rico Malik Ibn
Danaf comprou aquela escrava, mal lhe pôs a vista em cima. Teria sido a
combinação de pele clara com os caracóis negros que o enfeitiçou? A verdade é
que resolveu casar com ela, indignando a família. Casamentos daquele tipo não
constituíam novidade, mas não lhe chegaria manter a cristã como concubina? Ao
fim e ao cabo, tinha já duas esposas. Malik Ibn Danaf não deu ouvidos a ninguém
e a escrava transformou-se numa das senhoras mais ricas de Lusbuna.
Zubaida
ensinava a sua língua latina à filha, facto que as outras duas esposas
criticavam, mas que o marido não proibia. Ele próprio e os seus dois filhos
conheciam os dialectos romanos, o que lhes permitia negociar com os moçárabes. Aischa
não possuía chave e preparava-se para bater à sua porta, quando esta se abriu e
duas criadas de cozinha passaram por ela apressadas. A moça entrou e, depois de
atravessar um pequeno corredor, penetrou num dos jardins mais bonitos de
Lusbuna, à volta do qual se distribuíam as divisões da casa. À semelhança do
jardim de Alá, um oásis do bem-estar, os muçulmanos tentavam criar o seu
próprio Paraíso. Sobre caminhos ladrilhados e por entre canteiros de jasmins,
rosas e camélias, Aischa caminhou até chegar ao repuxo, no centro. Num dos
esguichos, recolheu o líquido cristalino nas mãos, que levou à boca, e a
frescura deslizou-lhe pela garganta. Levantou os caracóis negros que lhe caíam
pelas costas e humedeceu o pescoço e a nuca. Fechou os olhos, inspirou o
perfume doce à sua volta e sentiu-se realmente no Paraíso... Um Paraíso mais
sossegado do que o costume! Pelos vistos, tinham ido todos comentar os
acontecimentos para a rua, até os escravos cristãos. Aischa aproveitou para se
dirigir à biblioteca do pai, no rés-do-chão, onde se encontravam os aposentos
dos homens e onde as mulheres só podiam entrar com a permissão daqueles. Mas a
moça atreveu-se, sentindo a casa vazia, pois gostava de ler poemas e histórias
de amor. Ser-lhe-ia difícil ter que viver sem eles, era-lhe inconcebível que
nos reinos cristãos quase ninguém soubesse ler!
Agarrou
num volume de Ibn Hazm, um poeta cordovês do tempo do califado, e subiu as
escadas que, partindo do pátio, davam acesso aos aposentos das mulheres, no
primeiro andar. Cortinas coloridas e leves separavam os quartos. Aischa entrou
naquele que dividia com a mãe, abriu o dossel branco e transparente que
envolvia a sua alcova, sentou-se, abriu o livro ao acaso e leu:
Indício
do pesar são o fogo que abrasa o coração
e
as lágrimas que se derramam e correm pelas faces.
Mesmo
que o amante esconda o segredo do seu peito,
as
lágrimas dos seus olhos publicam-no e declaram-no.
Quando
as pálpebras deixam fluir as suas fontes
é
que no coração há um doloroso tormento de amor.
Aischa
sentiu uma melodia arrastada e triste apoderar-se dos seus pensamentos. A moça
tinha jeito para a música, já começara a compor as suas próprias cantigas e o
pai apreciava-lhe a voz. Tanto que, quando ela expressara o desejo de aprender
a tocar alaúde, o mercador contratara uma das tocadoras do harém do alcaide
para a ensinar. Aquele poema de Ibn Hazm, no entanto, não lhe inspirou apenas
uma nova melodia. Aischa perguntou-se que aspecto teria o jovem que um dia
haveria de desenvolver sentimentos daquele tipo por ela. Tentou concentrar-se
na imagem de um muçulmano de olhar doce e penetrante. Porém, os ricos brocados
que o vulto envergava teimavam em transformar-se em vestes humildes de escravo!
E o turbante desaparecia, descobrindo cabelos que brilhavam dourados ao sol! A
moça deixou-se cair em cima das almofadas de seda que guarneciam a alcova.
Nunca mais se esquecera de um grupo de escravos que vira no porto de Lusbuna,
vindos do norte longínquo, negociados pelos judeus. Mas tinha que lutar contra
tais impulsos! Como filha de um mercador rico, estava-lhe destinado um
casamento com um muçulmano respeitável, quiçá pertencente à elite que vivia na
al-qasbâ...» In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN
978-989-809-261-8.
Cortesia
de Ésquilo/JDACT