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«(…) Pouco importa que
numa célebre discussão de Os Maias, ainda e sempre no estilo das paródias e
disputas boémias de Coimbra, um dos personagens conclua o debate sobre a
Evolução com um veredicto brutal e bem português: Darwin é uma besta. As
doutrinas de um dos homens--chave da visão moderna da Humanidade
impressionaram, como é sabido, a fantasia queirosiana. O tempo novo aberto com
a hipótese da Evolução deu-lhe a ideia de viajar desde a Origem (ou para a
Origem) pelo interior da Vida, como Woody Allen no interior do fantasma do
corpo feminino erotizado. Esse percurso desde o átomo original até ao átomo
consciente de si é o que Ega-Eça deseja ficcionar para evocar o inevocável: o que
nos prende aos começos e, paradoxalmente, nos confere em termos de passado
inconsciente a eternidade perdida que o ser filho de Deus nos concedia outrora
de mão beijada.
Uma das maiores
originalidades de Eça foi tratar ou integrar na sua ficção as questões mais
graves e candentes da sua época a propósito dos casos mais superficiais ou
mundanos. Primeiro do que ninguém, e até hoje sem sucessor, ele conferiu à
mundanidade um estatuto senão de sublimidade pelo menos de sedução. No
divertido texto sobre Almanaques, o já então autor de Os Maias, texto que é uma
obra-prima de publicidade e de humor, como quem fala de outra coisa, aflora,
como raramente o terá feito, não a sua filosofia, mas a essência depurada da
sua visão e vivência do Tempo. Entre outros benefícios, escreve Eça, o Almanaque,
repositório de conhecimentos úteis e de ciência fácil, tem o incomparável benefício
de nos tornar o tempo visível e como palpável. Como? Aprisionando-o na rede luminosa
das datas. contando-o, nos dois sentidos do termo para que, por esta simples
operação, a Realidade, toda a realidade, a dos Impérios e a quotidiana, não
resvalem no Nada.
Consideremos que um dia esquecido
não registado no Almanach seria absolutamente como um negro pedaço de Não-Ser por
onde um pedaço da nossa vida se afundaria, se iria ao Nada. E mais longe: é a certeza
da data que imprime realidade às coisas que, sem essa certeza encarnadora, apenas
passadas, se desfariam na diafanidade e impalpabilidade do Tempo. É em passagens
como estas e não nas juvenis declarações de princípio, demasiado tomadas à letra
por ele, mas sobretudo por muitos dos seus comentadores, que melhor se apreende
que espécie de realismo é o seu e que monstro teve que vencer ou contra quem lutou
para subtrair justamente a realidade, a vida real, a essa força de dissolução e
de desilusão que é o Tempo. Todo o tempo, mas sobretudo, este novo tempo fora das
mãos de Deus, se aceito como elemento de purificação, diz ainda Eça nesse texto
admirável, permite que não nos percamos com armas e bagagens na vacuidade
intrínseca do Tempo. Se não tivéssemos esse paradoxal poder de datar, ou de relatar
na sua minúcia inútil e sublime, o tempo que passa, não existiríamos.
Noutro registo: se não tivéssemos
o poder de lembrar, e esse poder em todo o seu enigma chama-se escrita, não existiríamos.
Todo o nosso viver consiste num rolo, de sonhos que se vão desprendendo de nós,
fugindo para trás como o fumo de uma tocha que corre, depressa adelgaçados, logo
esvaídos. De todos os grandes homens da Geração de 70, ninguém teve como Eça um
sentimento tão visceral, carnalmente vivo, da inanidade da vida. E só não o compreende
quem não vê nessa tentação niilista que por comparação com a de Pessoa designarei
de melancólica e não negra a outra face da sua pulsão sensual, dionisíaca, como
outra não se conhece (mesmo a de Garrett), com tão esplendorosa tradução no nosso
imaginário. Eça de Queirós foi, como talvez só Camões o tenha sido para o seu tempo,
um grande consumidor de alimentos terrestres, de fantasmas da imaginação
alheia, de mitos culturais, de ícones históricos, de legendas, de tudo que em qualquer
ordem, a Beleza, desejo redimido pela forma, forneceu à sua fome de ficção e
mitificação inatas. Tudo lhe foi tema e motivo para glosa e recriação. A literatura
como imaginário constituído foi sem dúvida, e é assim para todos os escritores,
a fonte das fontes». In Eduardo Lourenço, As Saias de Elvira e
Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006, ISBN 989-616-151-8.
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Gradiva/JDACT