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e wikipedia
A
Construção Ideológica
«Da
vasta publicação não-ficcional de Eça de Queirós pode emergir, dialogando com a
obra romanesca, a construção simbólica de um imaginário erótico. Essa
construção é veiculada pela abordagem de uma série temática, de motivação
fortemente afectiva, que pode constituir um conglomerado de motivos e uma
enunciação de princípios valorativos que terão um elevado poder estruturante,
tanto na ficção como no discurso não-ficcional. Constituíram o material de
análise os textos deliberadamente não ficcionais publicados na Imprensa, como
as crónicas jornalísticas ou os prefácios, ou os textos não publicados pelo
autor, como as cartas, recolhidas e publicadas sem a sua presença. Se a
motivação jornalística é real em grande parte dos textos, o certo é que, na sua
ampla diversidade, todos os textos analisados possuem uma mesma e singular
condição de enunciação: a do lugar de mediação e interferência entre as
instâncias disjuntas do homem e do autor, do escritor e do leitor. O registo
não-ficcional queirosiano traduz, pois, nos seus diferentes modos, o fluente
devir de uma subjectividade enunciativa, profunda e ostensivamente
comprometida. Assim, a fixação e encadeamento de uma simbólica do eros nestes
textos, que actualizam as transformações figurativas e retóricas da
subjectividade, poderá mostrá-los, igualmente, como uma reorganização sintagmática
de estados de alma, a tradução movente da competência passional de um sujeito
enunciador. Também por isso, a análise destes textos integra uma geral
indagação do processo queirosiano de enunciar o desejo.
Deste
vasto conjunto textual, destacam-se, desde a década de 67, pela sua recorrência
e global coerência, dois conjuntos temáticos cuja unicidade simbólica tentarei
elucidar: a representação da figura feminina, caracterizada por uma saturação
mítica e por uma central dissociação; e a representação da decadência,
caracterizada pela perda de um sentido original, pela perturbação de uma ordem
e pela aniquilação do vigor consciente. Ambos os conjuntos mantêm cingidas
relações entre si e com a crítica literária e social; a desordem feminina e a
decadência são as figuras em que, de forma sistemática, se encarna o
investimento dos valores, quer estéticos, quer ideológicos. A quase totalidade
da produção não-ficcional de Eça de Queirós, no início da sua actividade
literária, materializou-se na sua colaboração n’ O Distrito de Évora, jornal de
que foi, entre Janeiro e Agosto de 1867, director e principal redactor. Da
variada temática desta sua extensa colaboração avulta, e talvez predomine, o discurso do moralismo social, em
que é insistente a referência reprobatória à prostituição e à obscenidade.
Integram
a preocupação morigeradora três outros veios temáticos: a representação
sarcástica das mulheres, a crítica à decadência literária e a rejeição da vida
moderna. De facto, este último constitui o tema englobante e como que
explicativo, contextual. Assim, prevalece desde logo uma aguda consciência da
decadência que caracteriza o tempo presente. A leitura de Cheiros de Paris, de
Louis Veuillot (simultânea aliás à de Taine e à de Victor Hugo) é talvez o
ponto de partida factual para a sistemática representação da actualidade
cultural como uma época crepuscular e degenerescente. Já presentes nesta época,
a artificialidade da cultura urbana e o seu afastamento em relação à Natureza
consubstanciam, neste momento, uma fusão curiosa de reflexões e leituras: o
romantismo de Heine e Hugo, o áspero e apocalíptico catolicismo de Veuillot, o
sentimento de indigenato e a aguda observação de Taine em Voyage en Italie.
Será particularmente marcante a imagem de Paris, tipificação da vertiginosa e
decadente cidade-civilização, à qual se opõe a doce, indolente e voluptuosa vida
meridional. Assim, a representação de Lisboa recupera traços da vã agitação do
Paris de Veuillot e traços da preguiça da Nápoles de Taine. A crítica literária
constitui outro domínio íntima e explicitamente associado ao moralismo social.
Um mesmo quadro da decadência, de que a literatura é um dos mais efectivos
sintomas, integra tanto a banal e amaneirada literatura romântica como a
literatura exclusivamente retórica de Mallarmé, de Baudelaire, Leconte de
l’Isle, Catulle Mendès.
O
sexo mercantil, a emancipação feminina, a desagregação dos valores matrimoniais
(amor livre), o rebuscamento formal e a consagração literária da paixão ilícita
constituem pois, desde 1867, motivos da representação da decadência, integrando
uma série simbólica caracterizada pela inversão e artificialidade: isto é, pela
perda. Inquieto e ressentido, o discurso da perda processa duas noções básicas:
a noção de que o curso da História está inflectido por uma falsificação, uma
perversão irremediável; e a noção da aproximação assimptótica de uma
catástrofe - que está sempre iminente, mas nunca mais chega: “Hoje em quase
toda a Europa se dá o mesmo: na véspera de grandes factos sociais, de terríveis
transformações, por toda a parte, na França, na Espanha, na Inglaterra, em
Portugal, a literatura decai.
Enquanto
a desejada catástrofe não chega, e Eça encenou, por várias maneiras, a sua
chegada, a representação do presente enquanto véspera da catástrofe
caracteriza-se pelas figuras da estagnação e do torpor que, sempre de uma forma
ou de outra associado à languidez e à lascívia, atravessando como um leit-motiv
toda a ficção queirosiana, está no Distrito de Évora já plenamente configurada.
A reflexão sobre esse vazio interior abre de resto caminho à representação
deliciada da influência do clima meridional, a qual, muito provavelmente, terá
encontrado uma impressiva sugestão em Taine e nas suas descrições da indolência
sensual dos lazzaroni napolitanos». In Ana Luísa Vilela, Erotismo Queirosiano,
Universidade de Évora, ContraNatura, Wikipedia.
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