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e wikipedia
«A reencarnação
sempre foi um assunto importante para Gibreel, durante quinze anos o maior
astro da história do cinema indiano, mesmo antes de derrotar miraculosamente o
Vírus Fantasma que todo mundo começara a acreditar que ia pôr um fim em seus
contratos. Alguém, portanto, devia ter sido capaz de prever, só que ninguém
previu, que quando ele se levantasse e voltasse à activa conseguiria por assim dizer
transformar em sucesso o fracasso dos germes e abandonar para sempre sua velha
vida, uma semana depois de seu quadragésimo aniversário, desaparecendo, puf!,
como num truque, sumindo no nada.
Os primeiros a notar sua ausência foram os quatro membros da equipa de sua
cadeira de rodas no estúdio de cinema. Muito antes da doença, ele tinha adquirido
o hábito de ser transportado de cenário para cenário, no grande estúdio de DW
Rama, por esse grupo de velozes e confiáveis atletas, porque um homem que chega
a fazer onze filmes simultâneos precisa preservar suas energias. Guiados por um
complexo código de traços, círculos e pontos que Gibreel recordava de sua
infância passada entre os famosos entregadores de almoço de Bombaim, os homens
da cadeira de rodas o transportavam de personagem para personagem, entregando-o
pontualmente e sem erro, da mesma forma que seu pai costumava entregar almoços.
E, depois de cada tomada, Gibreel voltava para a cadeira e era empurrado em
alta velocidade até ao próximo cenário, para receber novos figurinos, nova
maquilhagem e novas falas. Uma carreira no cinema falado de Bombaim, ele dizia
à sua leal equipa, parece mais uma corrida de cadeira de rodas com uma-duas
paradas no box durante o trajecto. Depois da doença, do Germe Fantasma, da
Moléstia Misteriosa, do Vírus, voltou ao trabalho, cuidando-se mais, só sete
filmes de cada vez..., e então, sem mais nem menos, não estava mais lã. A
cadeira de rodas ficou vazia no meio dos estúdios silenciosos; sua ausência
revelando o mau gosto da artificialidade dos cenários. Os empurradores da
cadeira de rodas, de um a quatro, inventaram desculpas para a ausência da
estrela quando os executivos cinematográficos caíram em fúria sobre eles: Ji, deve estar doente, sempre
foi famoso pela pontualidade, não, por que a crítica?, maharaj, grandes artistas têm o direito de ser
temperamentais de vez em quando, na,
e por causa desses argumentos transformaram-se nas primeiras vítimas
do inexplicável passe de mágica de Farishta, sendo despedidos, quatro três dois
um, ekdumjaldi, chutados
para fora dos portões do estúdio, de forma que uma cadeira de rodas ficou
abandonada, juntando poeira debaixo dos coqueiros pintados em torno de uma praia
de serragem de madeira. Onde estava Gibreel? Os produtores cinematográficos,
deixados sete vezes na mão, entraram em custoso pânico. Está vendo, ali, o
campo de golfe do Willingdon Club?, só nove buracos hoje em dia, os
arranha-céus brotaram dos outros nove como gigantescas ervas daninhas, ou,
digamos, como lápides marcando o local onde jaz o corpo esquartejado da cidade velha,
ali, bem ali, executivos de alto-escalão, errando até as tacadas mais simples;
e, olhe para cima, tufos de cabelos angustiados, arrancados de cabeças
importantes, esvoaçando das janelas dos níveis superiores. A agitação dos
produtores era fácil de entender, porque naqueles dias de plateias declinantes
e da criação de novelas históricas e donas de casa contemporâneas batalhando na
rede de televisão, havia um único nome que, colocado acima do título do filme,
podia ainda ser um tiro certo, uma garantia cem por cento de um ultra-triunfo,
de um super sucesso, e o dono do citado nome tinha partido, para cima, para
baixo ou para o lado, mas seguramente e inquestionavelmente tinha se
escafedido... Por toda a cidade, depois que telefones, motociclistas,
policiais, homens rãs e dragas raspando o fundo da baía em busca de seu corpo
trabalharam exaustivamente, mas sem sucesso, epitáfios começaram a ser
pronunciados em memória do astro que se tinha apagado. Num dos sete impotentes cenários
do Rama Studios, miss Pimple Billimoria, a última deusa apimentada, ela não é nenhuma senhorita frívola e
falante, é uma explosão de dinamite, sim senhor, desvestida
com os véus de uma dançarina do templo e posicionada debaixo das contorcidas
representações em papelão de figuras tântricas copulantes do período Chandela,
e percebendo que a sua grande cena não aconteceria, que sua grande chance se
espatifara, apresentou suas desdenhosas despedidas a uma plateia de operadores
de som e electricistas que fumavam seus cínicos bidis. Assistida por uma ayah tonta de tristeza, toda atrapalhada, Pimple tentou o
desprezo. Meu Deus, que sorte!, disse. Pois hoje era a cena de amor, chhi chhi, e eu estava
desesperada pensando como ia aguentar aquela boca com aquele hálito de merda de
barata podre». In Salman Rushdie, Os Versículos Satânicos, 1989, Publicações dom Quixote,
2001, colecção Ficção
Universal, ISBN: 978-972-200-746-7