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Montségur.
1243
«(…)
Seu riso soava sarcástico e eu continuava tão ignorante como antes, embora
agora pudesse imaginar onde estava situado o Roc de la Tour: na ponta mais
extrema da parte noroeste do pog, onde o dorso da montanha desce,
deixando novamente em liberdade o rio Lasset. Por que não atravessamos a
garganta, que parece o caminho mais curto? Muito simples, porque ali já estão
instalados os templários, e terão avisado os de cima de nossa chegada! Mas os
templários são cavaleiros cristãos, retruquei indignado. Como pode pensar que
se relacionam com os hereges? Não tinha perguntado pelo Graal, jovem franciscano?
Pois essa é a resposta!, e acelerou seus passos dando-me a entender que não
diria mais nada. Chegamos rapidamente ao pé da rocha onde acampava o grupo que
vinha de Camon. A recepção foi fria, para não dizer pouco amistosa.
Cumprimentaram formalmente o senescal e ignoraram os bascos. Traidores,
escutei-os vociferar entre dentes. A noite estava chegando. O senescal proibiu
que fossem acesas fogueiras para evitar sermos descobertos, mas esta ordem não
ajudou a melhorar o ambiente. Por cima de nós, escondendo-se detrás de nuvens
desgarradas que deslizavam com rapidez, erguia-se o peitoril da fortaleza dos
hereges, em noite sem lua. Os montanheses haviam pintado os rostos morenos com
fuligem para escurecê-los ainda mais e não levavam armaduras ou armas pesadas,
apenas casacos cintados, de couro, e punhais de fio duplo cujos cabos se viam
por cima do ombro ou pelo cano das botas.
O
senescal ordenou-me que desse a bênção a cada um deles, e quando foi a vez de
Gorka, sussurrei-lhe, ao colocar-lhe o sinal-da-cruz: que a Mãe de Deus o
proteja... Mas ele, sem mover-se, tirou da cintura uma pata negra de gato e
murmurou: cospe em cima disso, por favor. Simulei um acesso de tosse e fiz o
que ele me pediu. Os montanheses moviam-se, de facto, como gatos selvagens,
entendiam-se por meio de sons de animais, e tão logo enfiaram-se entre as
rochas, desapareceram de nossas vistas. Passei o resto da noite bebendo em
companhia do senescal. Mantivemo-nos calados e atentos a qualquer ruído que
pudesse chegar até nós. Não sei agora se foi invenção minha ou se eu me achava
ainda sobre o efeito das palavras de Gorka; de qualquer forma, eu via através
de minha imaginação o que acontecia como se o estivesse presenciando: os montanheses
alcançaram rapidamente as alturas do Roc de la Tour e ali ficaram presos às
escarpadas rochas, imóveis, até que chegou a madrugada. A vanguarda da
fortaleza eram besteiros catalães que passaram a noite com o olhar fixo na
escuridão, e não se escondeu deles a chegada dos bascos. Quando o dia
finalmente clareou, parecia-lhes que tinham superado o perigo. Relaxaram a
tensão das pálpebras e assim transcorreu, em meio a um silêncio traiçoeiro, o
tempo que se leva para rezar uma avé-maria, e então os montanheses atacaram os
defensores esgotados enquanto se apossavam de seus punhais. Ouviram-se gritos,
gemidos, o barulho da queda de alguns corpos e o silvo das bestas, enquanto
desprendiam-se pedras das rochas, até que os catalães decidiram retirar-se
pelos bosques e refugiar-se atrás dos muros protectores do castelo. Os bascos
não se atreveram a segui-los. A certa distância, tinham os besteiros mais
oportunidade de defender-se, mas como ainda reinava um certo claro-escuro,
desistiram de afugentar os montanheses de novo.
Dessa
forma, ao menos pelo que sabíamos, foi cortada a última comunicação dos
sitiados com o mundo exterior, e o cerco em torno do Montségur fechou-se. Dias
depois, voltei a encontrar Gorka no acampamento e ele contou-me o resto do
ocorrido. Em baixo, no vale, o hábil monsenhor Durand, que na realidade era
bispo de Albi, estava entregue à tarefa de desmontar as suas famosas catapultas
de lançamento, que os bascos começaram a subir peça por peça com a ajuda de
cordas. Mas os defensores puderam equilibrar essa vantagem graças à inventiva
de outro genial catapultador, Bertrand Beccalaria. Este engenheiro de Capdenac,
quando soube da situação de emergência pela qual passavam seus amigos, não
hesitou em abandonar espontaneamente a construção da catedral de Montauban,
obra que então dirigia, e conseguiu, no último minuto, chegar secretamente à
fortaleza com seus ajudantes. Suas catapultas transportáveis estavam instaladas
no Pas de Trébuchet, e responderam tão efectivamente aos atacantes que não
cabia pensar em algum ulterior avanço. O alto do monte era coberto pelo bosque
e atravessado por sendeiros que ficavam ocultos no meio das rochas, ora passando
por baixo ora por cima do terreno; um conjunto de pedras e terra que, além do
mais, mostrava-se esburacado por covas com saídas secretas, seguiam em poder
dos catalães. Os montanheses limitaram-se a manter a cabeça-de-ponte
conquistada. No entanto, o poder de suas máquinas não alcançava nada além da
barbacã, a potente defesa exterior do Montségur. Impossível aproximar-se da
murada do castelo! E por que não enviar reforços, eu queria saber, ao mesmo
tempo que me sentia como deve se sentir um eminente estrategista, e acabar de
uma vez com esse ninho de víboras do Inferno? Gorka rangiu os dentes e
respondeu: porque nem o senhor senescal nem o senhor arcebispo, e muito menos
seus medrosos mercenários, são bons alpinistas!, e pôs-se a rir. Além disso, já
cumprimos com nossa tarefa! E, de facto, a partir daquele dia foi possível
escutarmos como as máquinas de monsenhor Durand arrojavam cegamente, dia e
noite, suas pedras assassinas por cima do bosque, em direcção às muralhas dos
últimos baluartes exteriores, para grande felicidade do legado. Esses hereges
morrerão na barbacã como se estivessem sendo esmigalhados num morteiro,
alegrava-se Gorka». In Peter Berling, Os filhos do Graal, 1991, Editorial Presença,
colecção Grandes Narrativas, 1996, ISBN 978-972-231-982-9.
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