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Guimarães.
Maio de 1112
«(…)
O novelo dos cachorrinhos mal se distinguia do corpo da perdigueira. Afonso
desejou ser um deles, dormindo um sono descansado, carinhosamente protegido
pela mãe. Dona Teresa nunca assim o aconchegara... Recordou os olhos chorosos
da ama, as palavras ecoaram-lhe na cabeça: deixou-nos um herdeiro tão pequenino,
o nosso bondoso senhor. Afonso receava saber o que sucedera em Astorga. Ouvira
falar do tal cerco, perpetrado por el-rei de Aragão, a quem chamavam o Batalhador.
Depois de contrair matrimónio com a sua tia Urraca, o aragonês chegara a lutar
ao lado de seu pai, contra os mouros. Mas, depois da anulação do casamento pelo
papa, tudo se complicou. As aias e a ama falavam de intrigas que o pequeno não
entendia. Deus não podia consentir que seu pai morresse. Conde Henrique, neto
do duque Roberto da Borgonha, juntara-se ao imperador Afonso VI da Hispânia na
luta contra os infiéis. O imperador nomeara-o sucessor dos antigos condes de
Portucale, descendentes de Vímara Peres, o fundador de Guimarães, e dera-lhe
sua filha Teresa em casamento. Passados treze anos e três filhas, o herdeiro
nascera, finalmente. Henrique até chegara a sentá-lo no seu colo, quando
reunido com os ricos-homens e os infanções da sua corte. Afagara-lhe os
caracóis escuros e sorrira-lhe, ignorando o agastamento dos senhores com aquela
demonstração de afectos em público. Afonso não se recordava que sua mãe o
houvesse sentado no seu colo. Nem lhe afagava os cabelos. Deixava essas
frivolidades por conta das amas. A trovoada não cessava. O pequeno olhou para a
porta do estábulo, imaginando o conde Henrique a cruzá-la. Haveriam de surgir
juntos no salão, surpreendendo tudo e todos... Fixou a porta tanto tempo, que
ela começou a desfocar, à medida que os suores aumentavam e tudo parecia girar
à sua volta. Estava prestes a vomitar, quando ouviu alguém chamar por ele.
Recordou-se que Egas Moniz lhe queria falar. Na esperança de que o bondoso
fidalgo pusesse ordem naquele serão tão conturbado, sentiu novas forças, que
lhe permitiram levantar-se e deixar o estábulo.
A
frescura da chuva acabou por lhe afastar o enjoo. Ao chegar à escada da torre,
deu com um lacaio embrulhado num capote, que lhe disse estar farto de procurar
por ele. A senhora vossa mãe está mais brava do que uma fêmea de javali a quem
lhe atacam as crias! Apenas dona Teresa e os irmãos de Ribadouro se encontravam
agora no salão, sentados a uma ponta da mesa, onde ardiam velas num candelabro.
Nem repararam no pequeno, que se esgueirou para a reentrância da janela, onde
Egas Moniz o havia deixado. Não percamos a esperança, exigia a voz segura de
sua mãe. Com a desordem que se gerou, depois da morte do imperador, replicou
Ermígio Moniz, quem consegue olhar com esperança para os tempos vindouros? Os
conflitos entre Braga e Santiago de Compostela intensificam-se, recordou Egas
Moniz. Também Santiago de Compostela ficará sob a minha jurisdição, retorquiu
dona Teresa, assim que me apoderar da minha parte da herança de meu pai. Os
irmãos encaram-na estupefactos, ela acrescentou: recuso-me a reconhecer minha
irmã como única herdeira do imperador e reclamo a Galiza, além do condado
Portucalense. Acaso olvidais, retorquiu Ermígio, que vosso sobrinho Afonso
Raimundes foi coroado rei da Galiza na catedral de Santiago? Teresa fungou,
impaciente: tudo por obra e graça do arcebispo Gelmírez, a fim de reforçar a
sua primazia sobre Braga.
Mas
o pequeno é o neto mais velho do falecido imperador, recordou Egas. Pois que
fique com Leão e Castela! Mas a Galiza faz parte da minha herança! Os irmãos
entreolharam-se, remetendo-se ao silêncio. Egas Moniz suspirou, olhando para o
lado... E os seus olhos cruzaram-se com os de Afonso, amedrontado, naquele
canto. Santo Deus, mas que fazes aí sozinho? Chega-te a nós! Afonso
aproximou-se devagar, as pernas ameaçavam ceder a cada passo. Ouviu a voz
severa da mãe: onde estiveste metido? Não me digas que te enfiaste outra vez no
estábulo, com os cães! O teu pai não resistiu aos ferimentos infligidos em
combate. Mostra respeito pela sua morte e olvida, por uma vez, as brincadeiras
com o diabo dos animais! Acometido pela náusea, Afonso segurou-se no canto da
mesa e pousou a testa suada nos nós dos dedos. A sua respiração vinha aos
arrancos, misturava-se com os vómitos. Enquanto Egas Moniz lhe afagava os ombros,
Teresa continuou, impassível: já vai sendo tempo de te entregar a um aio, que te
ensine maneiras. Calha bem. Como sabeis, meus senhores, o meu falecido esposo
expressou o desejo de confiar o seu herdeiro nas vossas mãos. Os irmãos de
Ribadouro expressaram a honra que lhes conferia ser-lhes confiada tão
prestigiante tarefa. Ao pequeno também agradou o pensamento de ir viver com
aquela família, agora que nunca mais veria o sorriso de seu pai... A mesa
pareceu diluir-se no ar e Afonso mergulhou na escuridão». In Cristina Torrão, Afonso
Henriques, O Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.
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