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Deitada no chão, a este pariu-o a mãe em manta de burel, lençol teve só o da
mortalha, no esquife dos pobres em que o levaram a enterrar. A vida inteira fez
cama na manjedoura, dormindo sobre a palha que depois atirava às burras, e que
elas, às patadas, ensopariam de bosta e mijo. Vestimenta de esmola, toda em
remendos. Chapéu de feltro, enrijado pelo sebo de anos, botas já sem cardas,
ganhas faz muito com sete jeiras de monda, dez de segada, dez de vindima. Jeiras
de sol a sol, modo de dizer da alvorada ao lusco-fusco, merenda de comida seca
e um litro de vinho, o couro duro a moer pés nus, tormento que findava quando
calejavam. Conchego de amor nunca teve, nem conheceu mulher, de alegrias gozou
as mais simples: o remanso da sombra na canícula, um cibo de carne na festa,
copinho de aguardente, naco de queijo, talhada de melancia. O seu gólgota
começa de madrugada, quando carrega nas burras os sacos de serapilheira, cheios
do carvão de choça que a semana inteira andou a fazer. Cortar lenha para a sepultura,
cova funda de metro e meio, acender o lume, cuidar que arda vagaroso, nem forte
nem fraco, de modo que seja muita a brasa, pouca a cinza.
Reza
se o céu escurece. Reza para que o vento pare. Reza as graças quando as nuvens passam
sem chuva. Olhos no alto. Olhos na fogueira. Calor não sente, nem fome, nem sede,
só pensa nas chamas, esperançado de assim as domar. Escureceu, quase de repente
é noite, mas tem olhos de gato e o luar ajuda. Com gestos de semeador atira ao lume
punhados de terra, a que chegue para que não abafe logo, vá morrendo aos poucos.
Olha em redor e estaca, o instinto alerta para o barulho de gente, mas não distingue
vultos nem bestas, demora a ver os dois homens que um momento parados se recortam
contra o céu, e agora aos berros descem a ladeira. Reconheceu as vozes, mas por
razões que mal compreende, como se tivesse culpa de estar ali e tê-los visto, baixa
os olhos. São vizinhos, não precisa de temer, de verdade em tantos anos só uma
vez o roubaram. Culpa sua. Abrira a sepultura perto do caminho, e os ciganos, só
podiam ser eles, vendo o fumo ou cheirando lume, tinham rapado tudo. Reza, persigna-se,
desata as burras do azevinho a que as prendeu e toca-lhes de leve na garupa,
manda-as na dianteira.
Trôpego
nos passos, moído do corpo, o chapéu a tapar os olhos, vem derreado da
soalheira e de cavar, responde com um meneio de cabeça a quem lhe dá as boas-horas.
Pensamentos não tem, nem perguntas, sonhos ou desejos, só cansaço. Acomodou as bestas,
tirou-lhes a albarda e os arreios, mediu uma quarta de aveia para cada, enche-lhes
a pia. Agora é a sua vez. Encosta-se à manjedoura, põe o cântaro à boca, sôfrego,
metade da água a escorrer-lhe pelo peito. Um a um sobe os degraus e aninha-se a
varrer a cinza da lareira com a vassourinha de giesta, arranja as pinhas, os gravatos,
um punhado de cascas de amêndoa, outro de caruma. Canhoto de nascença, a navalha
na esquerda, a outra segurando a pederneira, petisca fogo, bafeja a chama para que
aumente, com o fole dá-lhe alento, dois sopros mais tem o lume feito. Sentado no
banquinho chega a panela, a cesta das batatas, a almotolia, o saleiro, as cebolas.
Levanta-se a despendurar o arame da saca do pão, enganchada na trave por causa dos
ratos.
Corta
o centeio. Deita as fatias na água que já ferve, pitada de sal, fio de azeite, quatro
batatas. Uma cebola. Vai-lhe o pensamento para a sepultura na ladeira, onde desde
ontem as brasas devem ter esfriado. Afasta a panela do lume e remexe com a colher
de pau, corta o dente de alho que tinha esquecido. Três vezes enche a malga e não
deixa resto». In J. Rentes de Carvalho, O Meças, Quetzal Editores, Língua Comum, Lisboa,
2016, ISBN 978-989-722-286-3.
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QuetzalE/JDACT