Cortesia
de wikipedia e jdact
«O
coração das trevas bate no Afeganistão. Quando os homens são os únicos
detentores de todos os privilégios, nem a riqueza, a beleza, a inteligência, a
educação, a força ou a família podem competir com o género. Os únicos aliados
das mulheres são as orações e a esperança. Os homens que fazem parte das vidas
delas podem casá-las com um ancião, tirar seus filhos ou até mesmo matá-las. As
mulheres vivem sabendo que ninguém virá em seu socorro. A libertação feminina
não faz parte da cultura local».
«No
Afeganistão, as meninas podem sonhar, mas só os sonhos dos meninos se tornam
realidade. Os meninos são donos do próprio mundo, enquanto as meninas
basicamente são servas obrigadas a agradar aos homens de suas famílias. Embora
se espere que os meninos afegãos tratem as mulheres com dureza, meu coração se
comoveu enquanto eu observava as garotinhas entrando timidamente na escola de
Share-i-Now, em Cabul, em seu primeiro dia no jardim de infância. Levantei os
ombros, estufei o peito e puxei minha mãe pela mão enquanto passava, cheio de
presunção, pelas criaturas tímidas que se aninhavam, com medo, nas saias das
irmãs mais velhas e das mães. Sentia a importância do momento porque tudo o que
estava usando era novo: a camisa branca com colarinho alto, o short cinzento e
os mocassins pretos. Olhei para baixo para conferir se a poeira de Cabul não
tinha encoberto o brilho de meus sapatos, tão polidos que eu podia ver meu
reflexo. Eu vestia roupas caras porque as famílias afegãs gastam até o último
centavo para dar tudo de melhor aos filhos, embora em nossa casa não fosse
preciso fazer sacrifícios, porque tínhamos uma vida confortável.
Era
o ano de 1966 e eu tinha cinco anos. No Afeganistão, os meninos e as meninas
são separados na puberdade, mas enquanto pequenos podem se associar. Dessa forma,
eu estaria na mesma sala de aula com garotas da minha idade, embora, como
menino, eu fosse considerado mais importante. Entramos na sala em fila e minha
mãe e eu escolhemos uma carteira na área em que todos os meninos estavam se
reunindo. Minha mãe se abaixou para beijar minha face, mas eu me afastei certo
de que era adulto demais para demonstrações públicas de afecto. Ela acariciou
minha cabeça recém-raspada, a moda aprovada para um garoto pequeno. Lançou um
último olhar antes de se afastar, relutante de deixar seu único filho, Yousef
Agha Khail. Aquele foi o momento mais feliz de minha curta vida, porque eu
sabia que estava a caminho de me tornar um homem, como sempre desejei.
Olhei
em volta. As meninas estavam se reunindo de um lado da sala e os meninos do
outro. Pouco acostumadas a ficar longe das mães, as garotinhas pareciam
paralisadas de ansiedade e mantinham as cabeças baixas enquanto os meninos se
sentavam com a cabeça erguida, cheios de autoconfiança. Olhei para trás e vi
minha mãe parada à porta. Fiz para ela um aceno rápido, numa demonstração de
sangue frio. Lembro-me de que naqueles primeiros meses no jardim de infância eu
brinquei, assumindo a posição de garoto mais ousado, e trabalhei arduamente nas
lições, porque se esperava muito dos meninos. A vida escolar correu sempre
igual até o dia terrível em que minha velha ama, que todos chamávamos de Muma,
inadvertidamente vestiu em mim um short com um fecho difícil de abrir. Agora já
sou capaz de perdoar aquele erro elementar, porque Muma era tão velha que seu
cabelo tinha a cor da neve das montanhas, mesmo que, às vezes, o tingisse com henna.
Ela era natural de Pansher, uma região do Afeganistão onde as mulheres têm fama
de produzir mais leite do que o necessário para seus filhos. Por essa razão,
muitas famílias cultas contratavam pansheris como amas de leite. Muma
foi ama de leite na família de minha mãe por muitos anos. Quando minha mãe
ficou grávida pela primeira vez, minha avó Hassen mandou Muma cuidar dela.
Quando minha irmã Nadia nasceu, ficou evidente que o leite da ama já tinha
secado há muito tempo, mas apesar disso minha mãe manteve a fiel serva a seu
lado. Naquela manhã, quando senti vontade de ir à casa de banho, descobri que
meus dedinhos não conseguiam abrir o fecho do short. O responsável pelo
banheiro dos meninos se ofereceu para me ajudar, mas eu tinha um segredo que
não queria revelar, por isso o afastei. No entanto, logo fiquei desesperado
porque corria o risco de urinar na roupa. Minha proverbial autoconfiança
desapareceu, substituída por soluços de ansiedade. Nesse momento, o inspector
segurou minha mão e me levou de volta à professora na sala de aula. Quando
minha professora se abaixou para ajudar, tentei fugir de suas mãos curiosas.
Minha
imensa ansiedade aumentou o volume de meus gritos, fazendo minha professora,
surpresa, mandar o inspector procurar minha irmã mais velha. Nadia entrou
correndo na sala e desabotoou o cós de minhas calças. Minha irmã não estava
pensando com clareza porque, em vez de parar por aí, abaixou meu short diante
da turma inteira. Todo mundo soltou uma exclamação. Olhei para baixo, ofegante.
Meu segredo estava exposto. Yousef Khail não era um menino! Yousef Khail era
uma menina! Horrorizada, puxei as calças para cima e corri para a casa de banho
dos meninos, onde finalmente me aliviei. Depois disso, fiquei andando pelo
corredor da escola, envergonhada demais para encarar a professora e os colegas,
mas logo me mandaram voltar para a sala de aula. Quando entrei, meus intrigados
colegas me encararam. Ouvi alguns deles rirem, portanto fui depressa para meu
lugar e me sentei com a cabeça baixa, subitamente igual às menininhas que eu
tinha tratado com tanto desprezo. Em alguns instantes, fui transformada de
garoto popular em menina humilhada». In Jean Sasson, Por Amor a um Filho, 2010, BestSeller,
2014, ISBN 978-857-684-866-0.
Cortesia de BestSeller/JDACT