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Sustentei-me, então, escrevinhando. Pensava escrever nos jornais, mas só me
deram ouvidos alguns diários locais, coisas como a crítica teatral dos
espectáculos de província e das companhias itinerantes. Ainda cheguei a fazer
recensões, por uma ninharia, a espectáculos de revista, espreitando por entre
bastidores as bailarinas vestidas de marujos, fascinado com a sua celulite e indo
atrás delas à leitaria, a jantar um galão, se não estavam tesas, um ovo estrelado.
Ali tive as minhas primeiras experiências sexuais com uma cantora, em troca de
uma pequena nota indulgente, para um jornal de Saluzzo, mas para ela era
suficiente. Não tinha pátria, vivi em diversas cidades (cheguei a Milão apenas
por causa da chamada de Simei), revi provas para, pelo menos, três editoras
(universitárias, nunca para os grandes editores), para uma revi as entradas de
uma enciclopédia (era preciso verificar as datas, os títulos das obras, e por
ai fora), tudo trabalhos com os quais formei aquilo a que, a um certo ponto,
Paolo Víllaggio chamou uma cultura monstruosa. Os perdedores, como os
autodidactas, têm sempre conhecimentos maís vastos do que os vencedores: se
gueres vencer tens de saber uma coisa só e não perder tempo a sabê-las todas, o
prazer da erudição está reservado aos perdedores. Quantas mais coisas uma pessoa
sabe, maís as coisas não lhe correram como deveriam. Dediquei-me, durante
alguns anos, a ler manuscritos, que os editores (às vezes, até aqueles
importantes) me passavam porque ninguém lá tinha vontade de os ler. Davam-me
cinco mil liras por manuscrito, eu passava o dia inteiro estendido na cama a ler
furiosamente, depois redigia um parecer de duas páginas, dando o melhor do meu
sarcasmo para destruir o autor incauto, na editora todos ficavam aliviados,
escreviam para o desprecavido que lamentavam recusar, e pronto. Ler manuscritos
que nunca serão publicados pode tornar-se uma profissão. Entretanto, tinha
havido o caso com Anna, terminado como tinha de terminar. Desde então, nunca
mais consegui (ou ferozmente não quis) pensar com interesse numa mulher, porque
tinha medo de falhar de novo. Ao sexo recorri de forma terapêutica, uma ou outra
aventura casual, em que não tens medo de te apaixonar, uma noite e já está,
obrigado, foi simpático, e alguma relação periódica paga, para não estar
obcecado com o desejo (as bailarinas tinham-me tornado insensível à celulite). Entretanto,
sonhava com o que sonham todos os perdedores: escrever um dia um livro que me
daria glória e riqueza. Para aprender como tornar-me um grande escritor,
cheguei a escrever anonimamente (fazer de ghost writer, como se diz hoje em dia,
para ser politicamente correcto) para um autor de romances policiais, que, por
sua vez, para vender assinava com nome americano, como os actores dos westerns spaghetti.
Mas era bom trabalhar à sombra, coberto por duas cortinas (o Outro e o outro
nome do Outro). Escrever romance policial alheio era fácil, bastava imitar o
estilo de Chandler ou, na pior das hipóteses, de Spillane; mas, quando tentei
inserir algo que fosse meu, percebi que para descrever alguém ou algo eu
remetia a situações literárias: não era capaz de dizer que fulano estava passeando
numa tarde límpida e clara, mas dizia que estava andando sob um céu digno de
Canaletto. Mas depois me dei conta de que D’Annunzio também fazia isso: para
dizer que certa Costanza Landbrook tinha algumas qualidades, ele escrevia que
ela parecia uma criatura de Thomas Lawrence; sobre Elena Muti, observava que
seus traços lembravam certos perfis de Moreau jovem, e Andrea Sperelli lembrava
o retrato do fidalgo desconhecido da Galleria Borghese. E assim, para ler um
romance, era preciso ir folhear os fascículos de alguma enciclopédia da
história da arte vendida em bancas de jornal. Se D’Annunzio era mau escritor,
não significava que eu também deveria ser. Para me livrar do vício da citação
decidi parar de escrever». In Umberto Eco, Número Zero, 2015, tradução
de José Vaz Carvalho, Gradiva Publicações, Lisboa, 2015, ISBN
978-989-616-643-4.
Cortesia
de Gradiva/JDACT