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«Antigamente
foi costume fazerem memoria das cousas que se fazião, assi erradas, como dos
valentes & nobres feytos. Dos erros porque se delles soubessem guardar:
& dos valentes & nobres feytos, aos bõos fezessem cobiça auer pera as
semelhantes cousas fazerem. Coronica do Condestabre, a história é sobretudo uma lição
moral; eis a conclusão que, a nosso ver, sai de todos os eminentes progressos
ultimamente realizados no foro das ciências sociais. A realidade é a melhor
mestra dos costumes, a crítica a melhor bússola da inteligência: por isso a
história exige sobretudo observação directa das fontes primordiais, pintura
verdadeira dos sentimentos, descrição fiel dos acontecimentos, e, ao lado
disto, a frieza impassível do crítico, para coordenar, comparar, de um modo
impessoal ou objectivo, o sistema dos sentimentos geradores e dos actos
positivos. O desenvolvimento do critério racional e o predomínio crescente dos
processos próprios das ciências baniram os modelos antigos e fizeram da
história um género novo. Nem os discursos morais ou literários sobre a
história, à maneira do XVII século, nem o doutrinarismo seco do XVIII, que
sobre factos e instituições mal conhecidos construía sistemas gerais
quiméricos, nem a opinião, muito seguida em nossos dias, de considerar a história
unicamente nos seus fenómenos exteriores, averiguando eruditamente as épocas e
as condições dos sucessos, merecem, a nosso ver, imitação. Todos estes
sistemas, porém, ensaios sucessivos para determinar o género de um modo
definitivo, têm um lado de verdade aproveitável. Os modelos clássicos fizeram
sentir o carácter moral da história; os modelos abstractos, a necessidade de
compreender os fenómenos num sistema de leis gerais; os modelos eruditos,
finalmente, a condição imprescritível de um conhecimento real e positivo da
cronologia e dos elementos que compõem o meio externo ou físico das sociedades.
Nada disto, porém, é ainda realmente a história, embora todas essas condições
sejam indispensáveis para a sua compreensão. O íntimo e essencial consiste no
sistema das instituições e no sistema das ideias colectivas, que são para a
sociedade como os órgãos e os sentimentos são para o indivíduo, consistindo,
por outro lado, no desenho real dos costumes e dos caracteres, na pintura
animada dos lugares e acessórios que forma o cenário do teatro histórico. Estes
dois aspectos são igualmente essenciais: porque a coexistência independente dos
motivos colectivos e naturais, e dos actos individuais, é um facto
incontestável na vida das sociedades. Na História da Civilização Ibérica tratámos
de estudar o sistema de instituições e de ideias da sociedade peninsular, para
expôr a sua vida colectiva orgânica e moral. Tomámos aí a sociedade como um
indivíduo, e procurámos retratá-lo física e moralmente. Agora o nosso propósito
é diverso. Tratando da história particular portuguesa, somos levados a encarar
principalmente o segundo dos aspectos essenciais da história geral. A sociedade
portuguesa, como molécula que é do organismo social ibérico, peninsular, ou
espanhol, estas três expressões têm aqui um alcance equivalente, obedeceu, nos
seus movimentos colectivos, ao sistema de causas e condições próprias da
história geral da península hispânica. Por isso procurámos sempre, na obra
referida, indicar o modo pelo qual as leis gerais se realizavam simultaneamente
nas duas nações espanholas: duas, porque a história assim constitui
politicamente a Península. Metade da história portuguesa está, portanto,
escrita na História da Civilização Ibérica: a metade que trata da vida
da sociedade, como um ser orgânico. Compreender-se-á, pois, que nos abstenhamos
agora de repetir o que está dito, e que nos limitemos a enviar o leitor para
esse livro; indicando, quando for necessário, o lugar onde poderá encontrar a
explicação das causas gerais a que no texto se tem de aludir. Resta fazer a
segunda metade: resta caracterizar o que há de particular na história
portuguesa; resta fazer viver os seus homens, e representar de um modo real a
cena em que se agitam: tal é o programa deste livro, cujas dificuldades de
execução excedem em muito as do anterior. Nesse, bastavam o conhecimento e o pensamento:
um para nos dizer como foram as coisas, outro para nos indicar o princípio e o
sistema da civilização. Agora carece-se do faro especial da intuição histórica,
e dum estilo que traduza a animação própria das coisas vivas. Toda a
longanimidade do leitor será, pois, necessária para desculpar as imperfeições
da obra. É mister indicar ainda outro assunto e prevenir uma impressão, natural
em quem ler sucessivamente as duas obras. A História de Portugal consiste numa
série de quadros, em que, na máxima parte das vezes, os caracteres dos homens,
os seus actos, os motivos imediatos que os determinam e as condições e modo por
que se realizam, merecem antes a nossa reprovação do que o nosso aplauso.
Crimes brutais, paixões vis, abjecções e misérias compõem, por via de regra, a
existência humana; e por isso mais de um moralista tem condenado o estudo da
história, como pernicioso para a educação. Por outro lado, a História da
Civilização Ibérica respira um entusiasmo optimista que, ao primeiro exame,
pareceria contraditório com o péssimo e mesquinho carácter que as acções dos
homens apresentam. Um exemplo bastará para demonstrar este antagonismo: além
considerámos as conquistas americanas e asiáticas uma obra heróica, e agora
veremos que montanha de ignomínias foi o império português do Oriente. Esta
contradição, real para o critério abstracto, não existe, porém, para o critério
histórico. Toda a boa filosofia nos diz que o homem real é a imagem rude de um
homem ideal, que essa imagem vive no mundo inconscientemente, e que todas as Esta
contradição, real para o critério abstrato, não existe, porém, para o critério
histórico. Toda a boa filosofia nos diz que o homem real é a imagem rude de um
homem ideal, que essa imagem vive no mundo inconscientemente, e que todas as acções
dos homens, maculadas de defeitos e vícios, obedecem a um sistema de leis,
idealmente sublimes. É esta verdade que o povo consagrou quando formulou o adágio:
Deus escreve direito por linhas tortas». In J. Oliveira Martins, História de
Portugal, 1879, Edições Vercial, Guimarães Editores, Edição/reimpressão 2004,
ISBN 978-972-665-490-2.
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