jdact
«(…)
Acompanho-os até aos seus quartos, sublinhando com um gesto que o de Myrna
estava demasiado afastado da minha suite
e nos seus olhos presumi a picardia de uma interrogação. Achas? Ficámos de nos
encontrar um quarto de hora depois para o jantar e aproveito o tempo para
pentear a minha cabeleira branca, levemente azulada por causa dos cosméticos,
essa cabeleira que as minhas alunas adoram quando pousa sobre ela um raio de sol,
o raio de sol de sempre, que penetra pelo vitral de sempre, ao longo dos meus
quarenta anos de docência como catedrático e que já desde as suas origens
adivinhou a situação exacta das minhas prematuras cãs. O cabelo e as mãos. Sei
que gostam das minhas mãos capazes de traçar sulcos no ar, que secundam as
minhas explicações sobre o papel do veado nos rituais célticos, o animal que
fazia a ligação entre os deuses e os homens, aqueles que conduzem à sidh, o além-túmulo, ou o traçado das
minhas mãos no ar atrás da metempsicose nas origens de crenças sobre a
transmigração das almas de uns corpos para os outros. Através do movimento das
suas mãos percebemos a corrida do veado ou o momento em que as almas saem de
uns corpos e ocupam outros, diziam-me as raparigas com entusiasmo. Nos anos 50 aplaudiam,
por vezes, o final das minhas aulas. Nos anos 60 foi desaparecendo esta
possibilidade à medida que os estudantes se tornaram politicamente mais activos
e didacticamente mais desconfiados e, inclusive, provocadoramente cínicos,
embora possa dizer, com orgulho, que nunca tive nas minhas aulas nem um
princípio de contestação, nem meia algazarra, o que os meus colegas não
gostavam nada. E que para os rapazes tu és o saber e isso não discutem, por muito que leiam O Idiota da Família. Não liam O
Idiota da Família, mas eu sim, com a mesma curiosidade com que lia o Hara Kiri ou o National Ramport ou a Vogue,
para estar em dia com tudo e ter a réplica adequada a qualquer intervenção de
um delegado de turma ou de qualquer das amigas de Madrona que tinham alcançado
graças à Dunia ou à Vogue uma certa capacidade de entender,
por fim, a sua condição feminina, não aos níveis de Simone de Beauvoir, mas
quase. A Myrna ria-se do que chamava a minha versatilidade intelectual,
paralela por vezes, convergente outras com a minha versatilidade vital e
considerava-se uma especialista nas minhas versatilidades desde que no começo
da nossa relação fixámos mais de uma vez a hora da verdade, o momento em que eu
chegaria a um congresso com uma mala maior do que a habitual e viveríamos
juntos para sempre. Quem perde a cátedra? Questionei-me, questionou-se,
questionámo-nos e ela estava decidida a perdê-la. E faço-o consciente de que
sou uma imbecil, de que atraiçoou mais de cem anos de luta pela igualdade das
mulheres e que tu não mereces que eu faça este gesto porque és um egoísta, não
um egoísta mais, o egoísta por antonomásia. A ideia platónica do egoísta. Não é
verdade. Não é verdade? Que tu sejas um egoísta? Não. O sentido demasiado
vulgar com que utilizas a expressão de a
ideia platónica do egoísmo. Sei que é frequente a utilização desta fórmula,
mas não é clarificadora da verdadeira dialéctica platónica. No platonismo as
ideias não são necessariamente protótipos que actuam como referentes
comparativos do real. Vai levar no …, atirou-me em corectíssimo castelhano e
quando verificou que as minhas malas eram as de sempre, ou seja, aquela mala
funcional com rodas. uma das primeiras, que tinha comprado em Colónia, deduziu
ou induziu que não, que não viveríamos juntos para sempre e não foi por isso
que deixou de ir para a cama comigo naquele encontro, embora a notasse um pouco
distante, precisa e terminante como sempre, mas distante, como se estivesse e
não estivesse comigo. como se aguardasse com impaciência o final dos coitos e
do congresso. Vinte anos separavam-nos daquele encontro clarificador, uns dez
congressos ou simpósios mais, uma ou outra celebração especial de homenagem a
uma qualquer glória das literaturas românicas. E nunca mais voltámos a falar da
possibilidade de fugir de nós mesmos para sermos outros. juntos, mas outros, e,
no entanto, tínhamos de repente a necessidade de nos encontrar sem esperar
congressos reais e eu inventava pretextos para viajar a Londres ou ela para vir
até Barcelona, Madrid ou Granada onde nos encontrávamos porque sim, porque
necessitávamos de o fazer». In Manuel Vázquez Montalbán, Erec e Enide,
2002, Difel, Algés, 2003, ISBN 972-29-0651-8.
Cortesia
de Difel/JDACT