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«(…)
Os melhores romances são, evidentemente, aqueles que nunca se chegam a escrever.
Ontem, recolhi mais cedo a casa. Abri, ao acaso, um livro de Vaschide e Vurpas sobre
a Lógica Mórbida, aborreci-me vinte vezes, vi outras vinte vezes o relógio, atirei-me
sobre o meu velho Récamier de mogno e bronze doirado onde é tradição que
dormia a sesta Junot, e ia, por fatalidade histórica, a adormecer também,
quando bateram as sete horas. Devia estar às sete e meia no Avenida Palace.
Este inevitável jantar do Paço de Souza, com o seu bric-a-brac e as suas aventuras
de Londres, oprimia-me como uma trovoada próxima. Vesti a casaca, fatigado,
sonolento, amarrotei nas mãos um execrável par de luvas novas, embrulhei-me no
meu quimono inglês, e ia a acender o cigarro para sair, quando o criado entrou
com uma carta. Está o portador à espera. De quem é? Não disse, senhor doutor. Vi
o sobrescrito: letra de mulher. Voltei-o: havia, sobre o lacre doirado,
vestígios de um sinete de armas Pattes de mouche rápidas, nervosas,
convulsas. O perfume pareceu-me conhecido. Pus-me a adivinhar a proveniência.
Não atinei. Era uma carta de mulher. Abri.
Meu
amigo. Hesitei muito antes de me resolver a escrever-lhe esta carta. Parto hoje
para Bruxelas, inesperadamente. Não, meu amigo, não queria saber porquê.
Escrevo-lhe com os olhos vermelhos de chorar e tão turvos de lágrimas, que mal
vejo as pobres letras que lhe mando. Há de ouvir falar muito de mim. Hão de
dizer-lhe da sua pobre amiga todas as ignomínias e todas as torpezas. Acredite-os.
Deve ser tudo verdade. Eu nem já tenho o direito de exigir que me respeitem.
Esqueci tudo, perdi tudo de abdiquei de tudo. Aqui me tem, com as minhas pobres
mãos nas suas, a dizer-lhe adeus e a pedir-lhe o que só a um grande amigo
pediria. Deixo-lhe, confiando à sua guarda, um pouco da minha alma e da minha
vida. De todas as afeições que me restam, fiéis nos bons e nos maus momentos,
escolhi-o a si. Perdoe-me. Disse-me um dia, brincando, que queria ser o
padrinho dele. A ninguém melhor o poderia confiar, neste doloroso e delicioso
instante em que deixo Lisboa, talvez para sempre. Entrego-o ao seu coração, à
sua bondade, à sua ternura. Trate-o bem. Seja amigo dele. Leva ainda, nas
mãozitas brancas, os meus últimos beijos e as minhas últimas lágrimas. Quanto
me custou a deixá-lo, pobre amor! Aí o tem. É seu. Quis ainda que ele fosse
comigo, mas era impossível. Como havia de fazer esta longa viagem até Bruxelas
impertinente e doentinho como está! E depois, que será amanhã a minha vida, que
serei eu própria, amanhã? Não me esqueci de nada. Vão com ele os seus
brinquedos predilectos. O portador, que é o meu velho criado António, leva
ordem de lhe entregar tudo. Receba-o e fale-lhe. Que atracção que nós outras,
mulheres, temos para o abismo, e como eu me sinto, neste instante em que lhe
escrevo, horrivelmente feliz e deliciosamente desgraçada! Adeus. Beijo as suas
mãos amigas. Dê-lhe, ao pobre querido, o meu último beijo. A cabeça escalda-me,
sinto vertigens. É a hora do Sud. Uma vez ainda, adeus. Sua amiga. Luisa.
Está
aí o portador da carta?, perguntei eu ao criado. Está sim, senhor doutor. Mande
entrar. O António, tipo de escudeiro de casa nobre provinciana, vestido de
preto, os olhos inflamados de chorar, surgiu à porta. Trazia nos braços uma
espécie de berço de verga, acolchoado e coberto com um açafate. Aproximei-me,
inquieto e abri. Era um gato francês, branco e desdenhoso, soberbo e indiferente,
que me olhou com estranheza e se espreguiçou, ronronando, entre uma grande bola
de celulóide e uma cabeça vermelha de Polichinelo». In Iba Mendes, Contos
Portugueses, I volume, Livro 239, Projecto Livro Livre, Júlio Dantas, 2014,
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