«Maldito seja o cardeal que não apontou sucessor,
deixando, assim, Portugal envolto em lágrimas e dor»
«Gualdim
é o seu nome
destemido
mascarado
ao
povo mata a fome
ao
ministro deixa preocupado».
«(…)
Todos se voltaram ao ouvir a voz grave do mascarado. Vários pares de olhos brilharam
de emoção. Capitão Gualdim! Barnabé estremeceu. Tinha ordens para avisar as
autoridades sempre que visse a misteriosa personagem que fazia a vida negra ao
ministro e seus comparsas. Só que o terror que lhe tinha também era muito. Por fim,
decidiu-se pelo medo que sentia das torpes vinganças de Miguel Vasconcelos. Fez
sinal a uma mulher que espreitava do lado de dentro da taberna. Virou-se, mais
descansado, pois esperava ajuda rapidamente. O fidalgo não se meta onde não é
chamado! Isto é um assunto que tem de ser resolvido entre mim e este bandido! O
cavaleiro aproximou-se mais do outro homem., que começou a tremer que nem varas
verdes, cobarde como todos os fanfarrões. Isso é o que você pensa. Ou deixa de
bater no rapaz ou, juro por Deus!, trespasso-o imediatamente com a minha
espada! O taberneiro fitou-o em ar de desafio. Eu não recebo ordens de um
mascarado. Este desmontou e, de um salto, acercou-se dele. Arrancou-lhe a chibata
das mãos e desembainhou a espada, encostando-lha ao pescoço. Barnabé recuava,
assustado com a expressão do outro, que, mau-grado seu, manejava a espada na
perfeição. Pronto, pronto, senhor fidalgo! Olhe que pode magoar-se com essa espada
nas mãos! Não se altere! O rapazola observava a cena, boquiaberto. Nunca antes
vira o enigmático cavaleiro. Já nem sentia as dores do corpo, tal era a emoção
que o dominava. As pessoas observavam tudo, quase sem respirar. Sempre que o
capitão Gualdim fazia uma das suas misteriosas aparições, era como se houvesse magia
no ar. Todos pareciam viver o mesmo sonho, maravilhoso e emocionante. O que fez
o pobre rapaz para o castigar desta maneira? Gostava que eu lhe fizesse o mesmo
com a minha espada?, inquiriu o justiceiro, com os olhos brilhando
ameaçadoramente. Com a ponta da lâmina fez-lhe um corte superficial no pescoço.
O taberneiro soltou um grito de horror. Pela sua cabeça passaram mil horríveis
imagens, entre elas a do mascarado cortando-o às postas fininhas, com ar
maquiavélico. Recuou, violentamente, contra a parede. Atemorizado, os olhos
reviravam-se-lhe de uma maneira esquisita. De branco, passou a esverdeado,
enquanto o diabo esfrega um olho.
Tentou
recuar ainda mais, só que a parede não lhe acompanhava o passo. Curiosamente, metera-se
entre a espada e a parede... Ó, senhor fidalgo..., esse rapaz é um ladrão..., e
um comilão! Saiba vossa senhoria que me roubou metade de um pão, depois de ter
comido a parte que lhe cabia para um dia inteiro. Vossa majestade há-de
concordar que é um bandido! Pior que um desses reles salteadores de estrada!, disse,
com um suor frio escorrendo-lhe da testa. Gesticulava aflito com as mãos, como
se quisesse impedir o mascarado de lhe tocar. Gualdim dobrou a espada,
demonstrando a sua flexibilidade. Depois, com a ponta do dedo enluvado,
carregou na ponta da lâmina. Tinha um ar desinteressado. De repente, fez uns
gestos rápidos com a espada, mesmo em frente do nariz do avarento, deixando-o
sem pinga de sangue. As pernas deste fraquejaram e caiu de joelhos no chão. O
povo desatou a rir às gargalhadas, nada fazendo para disfarçar o seu contentamento
por ver castigar um tão grande e nojento delator. Parece-me que a lâmina
precisava de ser mais afiada…, observou o mascarado, com um esgar de
contrariedade na boca trocista. Olhou de esguelha para o outro, sorrindo do seu
pavor. Encostou-lhe de novo a espada ao pescoço, obrigando-o a levantar-se. A
cara dele quase se confundia com a parede. Sabe o que se passa, Judas de trazer
por casa? É que não aprecio nada quem denuncia os companheiros. E quando isso acontece,
gosto de afiar a minha lâmina nos corpos desses infelizes. É uma fraqueza minha…
Que hei-de fazer?! Não sujeis a espada em mim, meu querido e poderoso senhor!
Não mereço tamanha honra de vossa senhoria! O capitão Gualdim soltou uma gargalhada,
ao mesmo tempo que embainhava a espada. Um sorriso misterioso aflorou-lhe aos
lábios. Fez-lhe uma vénia, que deixou o taberneiro desconfiado e ainda mais
atemorizado. Pois tem muita razão. Realmente a sua reles pessoa não merece que manche
a minha lâmina em tão ultrajante sangue! Terá um outro castigo que nada tem a
ver com pauladas, chicotadas ou qualquer outra punição corporal... Toda a gente
se entreolhou, sem evitar um sorriso e tentando adivinhar que castigo o justiceiro
reservava ao sovina e cruel Barnabé. Um largo sorriso apareceu na cara dele,
deixando ver uns dentes podres e amarelos, nunca limpos em toda a vida». In
Isabel Ricardo, O Último Conjurado, Saída de Emergência, 2014, ISBN
978-989-637-676-5.
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