terça-feira, 13 de setembro de 2016

Xeque-mate da Rainha. Elizabeth Fremantle. «Reconheceria seu cheiro em qualquer lugar, irmão, diz com sarcasmo, tampando o nariz como se estivesse com nojo e virando-se de frente para ele, que está no meio de um grupo de homens…»

jdact

Palácio de Whitehall. Londres. Março de 1543
«(…) Quando pensa em Latymer e no que fez para ajudá-lo a partir, um turbilhão se ergue dentro dela como uma panela de leite fervendo. Precisa se lembrar do horror de tudo aquilo para se reconciliar com suas acções: os gritos angustiados, a forma como seu próprio corpo tinha se voltado contra ele, seu pedido desesperado. Procurou na Bíblia desde então um precedente, mas não há histórias de morte por misericórdia ali, nada para dar esperança à sua alma desonrada, e não há como escapar. Ela matou o marido.
Katherine e Meg entram no grande salão, ainda de mãos dadas. Cheira a lã molhada e madeira queimada e está fervilhando de gente, movimentado como uma praça de mercado. As pessoas circulam pelas alcovas e pavoneiam-se nas galerias, exibindo suas roupas finas. Nos cantos, algumas jogam jogos de tabuleiro, cartas ou dados, apostando. Ocasionalmente fazem uma algazarra quando alguém ganha ou perde. Katherine observa Meg, espantada diante de tudo aquilo. A menina nunca esteve na corte, mal esteve fora de casa, e depois da tranquilidade mortal de Charterhouse, toda coberta de preto, aquilo deve ser um rude despertar. Formam um par sóbrio com seus trajes de luto entre os bandos de damas com roupas vistosas que passam por elas, conversando animadamente, os vestidos elegantes balançando conforme se movem, como se estivessem dançando, sempre olhando em volta procurando quem notou quão bem-vestidas estão, ou para reparar, com inveja, nas que estão trajadas melhor. Gostam de pequenos cachorros, que ficam aninhados em seus braços como regalos ou trotam a seus pés. Até Meg consegue rir ao ver um que pegou ‘boleia’ na cauda da dona. Pajens e arautos vão de um lado para o outro e pares de serviçais passam entre as pessoas, carregando cestos de lenha destinados a alimentar as lareiras nas salas públicas. Mesas compridas estão sendo dispostas para o jantar no grande salão por um exército de rapazes da cozinha, que tagarelam e fazem barulho, cada um equilibrando uma braçada de pratos. Um grupo de músicos afina os instrumentos, as cordas dissonantes finalmente transformam-se em algo como uma melodia. Música enfim, pensa Katherine, imaginando-se carregada pelo som, rodopiando e girando até mal poder respirar de alegria. Ela interrompe o pensamento. Não pode dançar ainda. Param diante de um bando de guardas que passa marchando e ela se pergunta se vão prender alguém, lembrando-se de quão pouco quer estar naquele lugar. Mas uma ordem é uma ordem. Leva um susto quando duas mãos chegam do nada e cobrem seus olhos, fazendo seu coração subir para a garganta. Will Parr, exclama, rindo. Como você sabia?, pergunta Will, baixando as mãos. Reconheceria seu cheiro em qualquer lugar, irmão, diz com sarcasmo, tampando o nariz como se estivesse com nojo e virando-se de frente para ele, que está no meio de um grupo de homens e sorri como um menininho, o cabelo acobreado espetado onde antes estava o chapéu, os olhos de cores diferentes, um cor de água, outro caramelo, brilhando à sua maneira irreverente.
Lady Latymer. Mal posso me lembrar da última vez que a vi. Um homem dá um passo adiante. Tudo nele é comprido: nariz comprido, rosto comprido, pernas compridas e olhos que têm algo de cão de caça. Mas de algum modo a natureza conspirou para deixá-lo bastante atraente apesar da estranheza. Talvez tenha algo a ver com a confiança inabalável que vem de ser o mais velho dos irmãos Howard e o próximo duque de Norfolk. Surrey! Um sorriso invade seu rosto. Talvez não seja tão ruim na corte, com todos esses rostos conhecidos por perto. Ainda faz versos? Sim. Vai gostar de saber que melhorei muito. Uma vez ele escrevera um soneto para ela, quando eram pouco mais que criancinhas, e riam daquilo com frequência desde então, virtude rimava com amiúde. A lembrança lhe dá vontade de rir. Uma de suas vergonhas juvenis, como ele dizia. Sinto muito por vê-la de luto, continua ele, agora sério. Mas ouvi dizer quanto seu marido sofreu. Talvez seja uma bênção que tenha falecido afinal. Ela assente com a cabeça, o sorriso se desfaz, é incapaz de encontrar palavras para responder; pergunta-se se ele suspeita dela, esquadrinha seu rosto em busca de sinais de acusação. As circunstâncias da morte de Latymer foram descobertas? Estão falando disso nos corredores do palácio? Talvez os embalsamadores tenham visto alguma coisa, seu pecado escrito nas entranhas do marido. Ela desconsidera essa ideia. O que deu a ele não deixa rastro e não há acusação no tom de Surrey, é certo. Caso apareça no rosto dela, vão pensar que está perturbada de tristeza, mas mesmo assim seu coração está batendo forte. Deixe-me apresentar minha enteada, Margaret Neville, diz, recompondo-se. Meg está logo atrás com um olhar mal disfarçado de horror frente à ideia de ter que ser apresentada a esses homens, mesmo que um deles seja Will, que é praticamente seu tio. O desconforto está estampado nela. Desde aqueles acontecimentos malditos em Snape, Katherine a tem mantido afastada da companhia de homens tanto quanto pode, mas agora não há escolha. Além do mais, ela terá que se casar em algum momento. Katherine deverá cuidar disso mas, Deus sabe, a garota ainda não está pronta». In Elizabeth Fremantle, Xeque-mate da Rainha, 2013, Editora Paralela, Editora Schwarcz, 2016, ISBN 978-858-439-003-8.

Cortesia de EParalele/ESchwarcz/JDACT