quinta-feira, 13 de outubro de 2016

A Cruz de Esmeraldas. Cristina Torrão. «Estas palavras ofensivas criaram no povo um certo receio quanto à reacção do rei. Mas que mais lhe restaria senão obedecer à voz de Deus? E assim aconteceu»

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Lusbuna. Verão de 1142
«(…) Speyer situava-se a uma centena de milhas de Colónia, Reno acima. Há cerca de sessenta anos, o imperador Henrique IV tinha mandado ampliar a catedral da cidade, fazendo dela a maior construção de toda a Cristandade. Konrad constatou, porém, que naquele Natal de 1146 ela bem poderia ser duas ou três vezes maior. Só com dificuldade se embrenhou no meio do povo que se apertava no seu interior. Teve que se contentar com um lugar de pé, perto da porta principal, mas de onde via o monge Bernardo Claraval e o rei, ambos sentados ao lado do altar. Que estranha coincidência ele ter o mesmo nome do monarca! Tratava-se com certeza de um bom presságio. Toda a gente sabia que Konrad III não estava muito entusiasmado com as cruzadas, ao contrário de Luís VII, rei de França. Teria a ver com os conflitos que constantemente opunham o monarca alemão ao papa? O pontífice ainda não o havia coroado imperador em Roma, quebrando a tradição, pois o rei alemão regia sobre o chamado Sacro Império Romano, que incluía vastos territórios da Europa Central e o norte de Itália. O povo seguia emocionado a cerimónia na catedral de Speyer, apesar de quase ninguém entender a missa rezada em latim. Mas as gentes humildes vergavam-se ao peso das palavras misteriosas, murmuravam preces, na esperança de que o Todo-Poderoso lhes concedesse solução para os seus problemas, cura para as suas doenças e a entrada no Paraíso. Chegou a altura da pregação e Bernardo Claraval levantou-se. O seu hábito branco de cisterciense reflectia a luz das velas, o que, àquela distância, dava a Konrad a impressão de que avistava um vulto envolto numa aura divina. Bernardo empurrou o capucho para trás e mostrou um rosto ressequido, marcado pela ascese. O homem podia ser frágil e seco, mas a voz que emanava enchia os cem pés de altura da nave principal. Entranhada na pedra, percorria as paredes e alcançava os cantos mais remotos da catedral. O povo convenceu-se de que aquela não era outra senão a voz de Deus, até Konrad, pois parecia-lhe que os lábios do cisterciense mal se moviam. Ao contrário da missa, a pregação pelas cruzadas era traduzida. Bernardo acedeu ao pedido do arcebispo de Colónia e condenou a violência contra os judeus. Depois, fez surgir uma bula papal do interior do seu hábito, em que o pontífice garantia absolvição para todos os pecados de quem tomasse o sinal da cruz. Assim obténs tu, bravo cavaleiro, pregava a voz poderosa, obténs tu, homem guerreiro, um campo de batalha, onde lutarás sem medo, pois que a vitória conduz à glória, mas também a morte significa ganho. Bernardo enumerou os perigos que ameaçavam a Terra de Cristo e elevou os alemães a heróis: a vossa terra é fértil em homens fortes e corajosos. Por todo o mundo circula a fama da vossa heroicidade. Por isso vos digo: tomai as vossas armas com fervor, em nome de Cristo! Tomai o sinal da cruz e, para tudo o que o vosso coração arrependido confessar, obtereis perdão! Por fim, o monge referiu-se desagradado à hesitação de Konrad III em participar neste empreendimento, dizendo que o rei alemão era ingrato, ao recusar-se lutar por Cristo, que tanto por ele fizera.
Estas palavras ofensivas criaram no povo um certo receio quanto à reacção do rei. Mas que mais lhe restaria senão obedecer à voz de Deus? E assim aconteceu: Konrad III anunciou ter mudado de ideias e resolvido participar nas cruzadas! Konrad perguntava-se se a pregação o teria impressionado àquele ponto, ou se ele apenas tentava uma aproximação ao papa, a fim de ser finalmente honrado com a coroa imperial. Fosse como fosse. Na Primavera, o rei alemão far-se-ia ao caminho, tal como Luís VII de França. O povo jubilou. Depois de sucessivas colheitas desastrosas, a que se seguiam Invernos de fome, prontificavam-se milhares a tentar a sua sorte na Terra Santa. As cruzadas?, repetiu Johann, os olhos castanho-claros escancarados. Achas mesmo que devemos tomar parte nelas? Konrad observava o irmão perplexo, que, apesar dos seus quinze anos, ainda lhe parecia um miúdo, com os seus cabelos claros e lisos cortados em redondo. Logo tu tens dessas dúvidas? Haverá melhor maneira de servir a Deus?» In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT