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Juízos
do mundo
«Marcos
Freire Pamplona tinha vinte e sete anos. Era o dono do melhor palácio e dos
mais antigos apelidos da fidalguia portuense. Galhardo e valente. Pouco menos de
ilustrado. Religioso bastantemente para crer em Deus. Propenso a duvidar da religião
dos mártires de toda a fé, e duvidar da ciência insolente e brutal de Voltaire.
Tinha nascido em 1790. Em 1817 era revolucionário como o justiçado Gomes Freire,
seu parente, última vítima da ilustre série de soldados e generais dos seus apelidos,
mortos às mãos por mouros e por cristãos portugueses. Revolucionário, porém
quieto e rebelde a conjurar-se com os activos operários que minavam para a
explosão de 1820. É que Marcos Freire sentia-se maniatado ao berço por uma
criancinha de dois anos e meio. O amor paternal era-lhe, a um tempo, delícias e
tormento, índole, denodo e ódio a compelirem-no para os congressos secretos dos
fortes que fomentavam a heróica vingança de Gomes Freire. Olhos, alma e coração
a tirarem por ele para a beira do pequenino, que lhe sorria, como se entendesse
a mãe a dizer-lhe: prende-o, filho! Parentes e amigos arguiam-lhe a fraqueza de
se deixar vencer por considerações impróprias do sobrinho de Gomes Freire.
Alguns mostravam-lhe os seus filhos aos pares, aos seis, e com patriótico
entusiasmo clamavam que o amor paternal era mau subterfúgio da covardia. Outros
diziam que tinham, além dos filhos, esposas amadas e amantíssimas; e, sendo
assim, nem por amor delas aceitavam o estigma de indiferentes à tirania de
algozes e ao suplício dos primeiros mártires da liberdade, queimados nas
fogueiras do Campo de Sant’Ana. Nesta menção das esposas, acintemente feita
pelos mais indelicados, mal se rebuçava o propósito de ferir o pai da
criancinha. Marcos não era casado.
A
mãe do seu filho não lhe chamava esposo, e assim mesmo pensava que a sua união
com ele estava santificada e abençoada pelo anjo de Deus e de ambos. Maria de
Nazaré era da classe média, filha de mercadores abastados. Fugira incondicionalmente
aos pais, quando o fidalgo lhe deu uma casinha campestre, com a tristeza da
soledade e a alegria das flores em volta, e ao pé dela a bem-aventurança do
amor. Os sonhos de Maria não tinham implantado mais adiante a baliza da
felicidade. Ali se estava como esquecida de si e absorta naquele gozo de esposa,
segundo a natureza e o coração. Porque a natureza, a maviosíssima esposa de
Deus, lhe dava a ela as tardes saudosas, o azul do céu das manhãs; e, sagrada inspiradora,
lhe ensinava a entender os silêncios do seu ninho de folhagem, apenas quebrados
pelo vagido do filhinho amimado ou pela voz acariciativa de Marcos Freire. Maria,
não obstante a alta estimação em que tinha a sua fortuna, era, no juízo das pessoas
que lhe sabiam o destino, conceituada em conta de criatura abatida ao estrado
das perdidas. Daí vinha o nenhum pendor que os amigos de Marcos Pamplona
queriam que lhe ela e o filho tivessem no espírito, desdourando-a, sem a nomearem,
nos confrontos em que a punham com as esposas legais, e desestimando a
insignificante prisão de um filho, manchado da ilegalidade com que abriu os
olhos à luz deste planeta. A juízo de tais, homem que amparava a mulher, por
amor dele tão perdida quanto o mundo a condenava, e se deixava enliçar nos
encantos de um filho que, segundo o uso e a prudência, devia ter já ido à
sepultura pelo postigo dos enjeitados, tal homem arguia indignidade e desonra
esquivando-se, por tais motivos, de conjurar com os dignos sectários do seu
tio, o enforcado general Gomes Freire.
Neste
parecer abundava tacitamente o pai de Marcos, fidalgo que ainda conhecera avós
dos tempos heróicos assim em valor que em virtudes; sendo todavia que nem seus
avós nem ele tinham os filhos ilegítimos e as mães ilegítimas na conta indecorosa
de empecilhos aos deveres da honra e dos apelidos. Por outro lado, os pais de
Maria de Nazaré, merceeiros da Rua dos Mercadores, entendiam que a sua filha,
manceba recatada do fidalgo Pamplona, corria parelhas de desonra com a pública
amásia de qualquer mecânico. Portanto, os dois infamados tinham tão somente o
seu amor e o seu filho a sanear e purificar-lhes o opróbrio: isto, da consciência
deles para baixo, para a terra, que para cima lá viam Deus. Suposto que
cerrasse os ouvidos às invectivas indirectas dos primos, às severas acusações
do pai e às ameaças ardentes dos padres pregoeiros de irrecusável Inferno para
pecadores de tal natureza, Marcos Freire não desprezava os ditames da religião
de Jesus nem os liames sociais constituintes e reguladores da família. Bastava-lhe
amar o seu filho para aceitar como justo e bom tudo que houvesse do nobilitar
aos olhos do mundo. Bastava-lhe o afecto reconhecido à cega menina, que só a
ele o vira à luz do seu amor desinteresseiro, para a miúdo pensar na felicidade
e obrigação de dar ao seu filho mãe respeitada e defendida das injúrias da
virtude intolerante. Se esta esperança lhe ia do coração brilhar nos olhos de
Maria, húmidos de alegres lágrimas, a maviosa criatura inclinava-os ao rosto do
seu Álvaro e não sabia responder com expressão mais comovida. Parecia dizer ao
filho: teu pai promete dar-te a suprema felicidade. O mundo ainda te há-de ver
entre os parentes do teu pai, e ninguém te perguntará com malicioso desdém que
nome tive e quem fui». In Camilo Castelo Branco, A Doida do Candal,
1867, Projecto Livro Livre, Nº 225, Poeteiro Editor, 2014.
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