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«(…) E nesse ano
justamente se estreou nas Letras Gonçalo Mendes Ramires. Um seu companheiro de
casa, José Lúcio Castanheiro, algarvio muito magro, muito macilento, de enormes
óculos azuis, a quem Simão Craveiro chamava o Castanheiro Patriotinheiro,
fundara um semanário, a Pátria, com o alevantado intento (afirmava
sonoramente o prospecto) de despertar, não só na mocidade académica, mas em
todo o país, do cabo Sileiro ao cabo de Santa Maria, o amor tão arrefecido das
belezas, das grandezas e das glórias de Portugal! Devorado por essa ideia, a
sua Ideia, sentindo nela uma carreira, quase uma missão, Castanheiro
incessantemente, com ardor teimoso de apóstolo, clamava pelos botequins da
Sofia, pelos claustros da Universidade, pelos quartos dos amigos entre a fumaça
dos cigarros, a necessidade, caramba, de reatar a tradição!, de desatulhar,
caramba, Portugal da aluvião do estrangeirismo! Como o semanário apareceu
regularmente durante três domingos, e publicou realmente estudos recheados de
grifos e citações sobre as Capelas da Batalha, a Tomada de Ormuz, a
Embaixada de Tristão da Cunha, começou logo a ser considerado uma
aurora, ainda pálida mas segura, de Renascimento Nacional. E alguns bons
espíritos da Academia, sobretudo os companheiros de casa do Castanheiro, os
três que se ocupavam das coisas do saber e da inteligência (porque dos três
restantes um era homem de cacete e forças, o outro guitarrista, e o outro
premiado), passaram, aquecidos por aquela chama patriótica, a esquadrinhar na
Biblioteca, nos grossos tomos nunca dantes visitados de Fernão Lopes, de Rui
Pina, de Azurara, proezas e lendas, só portuguesas, só nossas (como suplicava o
Castanheiro), que refizessem à nação abatida uma consciência da sua
heroicidade! Assim crescia o Cenáculo Patriótico da casa das Severinas. E foi
então que Gonçalo Mendes Ramires, moço muito afável, esbelto e louro, duma
brancura sã de porcelana, com uns finos e risonhos olhos que facilmente se
enterneciam, sempre elegante e apurado na batina e no verniz dos sapatos,
apresentou ao Castanheiro, num domingo depois do almoço, onze tiras de papel
intituladas dona Guiomar. Nelas se contava a velhíssima história da
castelã, que, enquanto longe nas guerras do Ultramar o castelão barbudo e
cingido de ferro atira a acha de armas às portas de Jerusalém, recebe ela na
sua câmara, com os braços nus, por noite de Maio e de lua, o pajem de anelados
cabelos... Depois ruge o Inverno, o castelão volta, mais barbudo, com um bordão
de romeiro. Pelo vílico do castelo, homem espreitador e de amargos sorrisos,
conhece a traição, a mácula no seu nome tão puro, honrado em todas as Espanhas!
E ai do pajem!, ai da dama! Logo os sinos tangem a finados. Já no patim da
alcáçova o verdugo, de capuz escarlate, espera, encostado ao machado, entre
dois cepos cobertos de panos de dó... E no final choroso da dona Guiomar, como
em todas essas histórias do Romanceiro de Amor, também brotavam rente às duas
sepulturas, escavadas no ermo, duas roseiras brancas a que o vento enlaçava os
aromas e as rosas. De sorte que (como notou José Lúcio Castanheiro, coçando
pensativamente o queixo), não ressaltava nesta dona Guiomar nada que
fosse só português, só nosso, abrolhando do solo e da raça! In
Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires, 1900, Porto Editora, 2014, ISBN 978-972-004-979-7.
Cortesia de Porto
Editora/JDACT