quarta-feira, 12 de outubro de 2016

A imagem do outro na Crónica da Tomada de Ceuta pelo rei João I de Gomes Eanes de Zurara. Natália Albino Pires. «Nascido entre 1410 e 1420, Gomes Eanes Zurara é, na história da cronística portuguesa, o segundo cronista mor do Reino e substitui Fernão Lopes»

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«A imagem do outro depende integralmente do eu que a descreve e que a constrói e é uma temática tão antiga como a história da humanidade. Das primeiras imagens icónicas do outro nas pinturas rupestres ou na arte paleolítica à imagem do outro no texto literário ao longo dos milénios, evidencia-se um longo processo (re)construtivo. As descrições do outro, ao longo da história cultural da Humanidade, vão, com todas as dificuldades definitórias subjacentes a estes adjectivos, do grotesco ao belo e estão presentes em diversos âmbitos desde o literário ao filosófico (ao sociológico ou antropológico) da antiguidade até ao presente. Do ponto de vista cultural, a noção do outro tem sido quase sempre construída a partir da perspectiva do ocidental, quer estejamos a reportar-nos a textos da antiguidade clássica ou do século XX, sendo de destacar as descrições do outro que se julgava existirem nos territórios inabitados para lá do mundo conhecido; as risíveis descrições do outro patentes na literatura de viagens, tanto portuguesa como espanhola, inerentes à descoberta do Novo Mundo e, ainda, as teorizações iluministas francesas sobre o outro, em especial a teoria do bom selvagem, que contribuíram para evitar por algum tempo a escravatura dos índios no Brasil. Por outras palavras e pese embora a personagem referir-se às diferenças sociais entre homens e mulheres, a perspectivação do outro e a sua descrição são feitas por aquele que possui o poder da escrita tal como lembra a burguesa de Bath na obra de Chaucer ou tal como lembra o próprio Zurara a propósito da memória histórica na obra que ora analisamos: e quall he mais segura sepulltura pera quallquer primçipe ou baram uirtuoso, que a escpritura que rrepresemta o claro conheçimento de suas obras passadas. Certo toda a nobreza dos homeẽs fora destroida, sse as penas dos escpriuaães a nom poseram em fim.
Na Literatura, o percurso da construção da imagem do outro seria impossível de descrever no âmbito de um breve estudo porquanto se trata de um topos desenvolvido ao largo de séculos e, exactamente pelos mesmos motivos, também será inexequível traçar a sua presença no âmbito restrito de uma qualquer cultura particular. Assim, tendo em conta o seu contexto de redacção, as peculiaridades literárias e culturais subjacentes às primeiras crónicas da segunda dinastia e as relações mouro/cristão durante os séculos XV e XVI, procuraremos analisar a imagem do outro, particularmente, a imagem do mouro veiculada na Crónica da Tomada de Ceuta, de Gomes Eanes Zurara.

Contexto de redacção da Crónica da Tomada de Ceuta
Nascido entre 1410 e 1420, Gomes Eanes Zurara é, na história da cronística portuguesa, o segundo cronista mor do Reino e substitui Fernão Lopes no ofício de guarda das escrituras da Torre do Tombo em 1454. Por encargo de Afonso V, escreve a Crónica da Tomada de Ceuta por el Rei D. João I; a Crónica dos Feitos da Guiné; a Crónica do Conde D. Pedro de Meneses e, finalmente, a Crónica do Conde D. Duarte de Meneses. Sem pretensão de aprofundar questões relativas ao contexto social, político e cultural da época em que a Crónica que analisamos foi escrita, importa, porém, ter presentes as palavras de Bertoli ou de Michelan. Com efeito, Bertoli lembra que as obras de Zurara fazem parte de um projecto de escrita para legitimar o poder régio e de parte da nobreza, bem como justificar suas acções. Este projecto está explícito nas três crónicas marroquinas que, por vezes, têm extensões de textos em comum. E Michelan reforça as suas palavras ao afirmar que: o papel das crónicas, produzidas sob a égide da dinastia de Avis, foi, fundamentalmente, de lançar as bases para a construção de uma imagem dinástica a ser fixada e transmitida para a posteridade, a partir, em grande parte, da exaltação política de tal dinastia, em que as figuras passadas serviam de alicerce para sustentar as acções presentes, além de criarem a ideia de continuidade política, mesmo com a mudança dinástica.
Antes de entrarmos na análise da imagem do mouro veiculada na Crónica da Tomada de Ceuta, parece-nos, também, relevante recordar que, à época da conquista de Ceuta, e até bem tarde na história moderna europeia, a guerra contra os mouros foi considerada justa e santa, procurando-se recuperar as antigas terras da cristandade (nomeadamente aquelas que haviam pertencido aos visigodos de quem os reis ibéricos se consideravam descendentes directos) e ancorando-se todos os actos de conquista nos baluartes teológicos da Igreja católica, isto é, na teorização de Santo Agostinho e na de São Tomás Aquino. Nesta medida e tal como lembra Michelan, as diferentes crónicas retomam sucessivamente tópicos utilizados pelos antecessores, nomeadamente: a história como mestra da vida, a referência e/ou a analogia às personagens antigas e bíblicas, a defesa do combate aos cismáticos e sarracenos, as menções às profecias, a constante referência à intervenção da providência divina, a ênfase sobre a lamentação dos mouros após as vitórias cristãs e a narrativa centrada nos monarcas». In Natália Albino Pires, A imagem do outro na Crónica da Tomada de Ceuta pelo rei João I de Gomes Eanes de Zurara Revista Medievalista, Nº 20, JUL-DEZ, 2016, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT