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«A
imagem do outro depende integralmente do eu que a descreve e que a
constrói e é uma temática tão antiga como a história da humanidade. Das
primeiras imagens icónicas do outro nas pinturas rupestres ou na arte
paleolítica à imagem do outro no texto literário ao longo dos milénios,
evidencia-se um longo processo (re)construtivo. As descrições do outro, ao
longo da história cultural da Humanidade, vão, com todas as dificuldades
definitórias subjacentes a estes adjectivos, do grotesco ao belo e estão
presentes em diversos âmbitos desde o literário ao filosófico (ao sociológico
ou antropológico) da antiguidade até ao presente. Do ponto de vista cultural, a
noção do outro tem sido quase sempre construída a partir da perspectiva do
ocidental, quer estejamos a reportar-nos a textos da antiguidade clássica ou do
século XX, sendo de destacar as descrições do outro que se julgava existirem
nos territórios inabitados para lá do mundo conhecido; as risíveis descrições
do outro patentes na literatura de viagens, tanto portuguesa como espanhola,
inerentes à descoberta do Novo Mundo e, ainda, as teorizações iluministas
francesas sobre o outro, em especial a teoria do bom selvagem, que
contribuíram para evitar por algum tempo a escravatura dos índios no Brasil.
Por outras palavras e pese embora a personagem referir-se às diferenças sociais
entre homens e mulheres, a perspectivação do outro e a sua descrição são feitas
por aquele que possui o poder da escrita tal como lembra a burguesa de Bath na
obra de Chaucer ou tal como lembra o próprio Zurara a propósito da memória
histórica na obra que ora analisamos: e quall he mais segura sepulltura pera
quallquer primçipe ou baram uirtuoso, que a escpritura que rrepresemta o claro
conheçimento de suas obras passadas. Certo toda a nobreza dos homeẽs fora
destroida, sse as penas dos escpriuaães a nom poseram em fim.
Na
Literatura, o percurso da construção da imagem do outro seria impossível de
descrever no âmbito de um breve estudo porquanto se trata de um topos
desenvolvido ao largo de séculos e, exactamente pelos mesmos motivos, também
será inexequível traçar a sua presença no âmbito restrito de uma qualquer
cultura particular. Assim, tendo em conta o seu contexto de redacção, as
peculiaridades literárias e culturais subjacentes às primeiras crónicas da
segunda dinastia e as relações mouro/cristão durante os séculos XV e XVI,
procuraremos analisar a imagem do outro, particularmente, a imagem do mouro
veiculada na Crónica da Tomada de Ceuta, de Gomes Eanes Zurara.
Contexto
de redacção da Crónica da Tomada de
Ceuta
Nascido
entre 1410 e 1420, Gomes Eanes Zurara é, na história da cronística portuguesa,
o segundo cronista mor do Reino e substitui Fernão Lopes no ofício de guarda
das escrituras da Torre do Tombo em 1454. Por encargo de Afonso V, escreve a Crónica
da Tomada de Ceuta por el Rei D. João I; a Crónica dos Feitos da Guiné;
a Crónica do Conde D. Pedro de Meneses e, finalmente, a Crónica do
Conde D. Duarte de Meneses. Sem pretensão de aprofundar questões relativas
ao contexto social, político e cultural da época em que a Crónica que
analisamos foi escrita, importa, porém, ter presentes as palavras de Bertoli ou
de Michelan. Com efeito, Bertoli lembra que as obras de Zurara fazem parte de
um projecto de escrita para legitimar o poder régio e de parte da nobreza, bem
como justificar suas acções. Este projecto está explícito nas três crónicas
marroquinas que, por vezes, têm extensões de textos em comum. E Michelan
reforça as suas palavras ao afirmar que: o papel das crónicas, produzidas
sob a égide da dinastia de Avis, foi, fundamentalmente, de lançar as bases para
a construção de uma imagem dinástica a ser fixada e transmitida para a
posteridade, a partir, em grande parte, da exaltação política de tal dinastia,
em que as figuras passadas serviam de alicerce para sustentar as acções
presentes, além de criarem a ideia de continuidade política, mesmo com a
mudança dinástica.
Antes
de entrarmos na análise da imagem do mouro veiculada na Crónica da Tomada de
Ceuta, parece-nos, também, relevante recordar que, à época da conquista de
Ceuta, e até bem tarde na história moderna europeia, a guerra contra os mouros
foi considerada justa e santa, procurando-se recuperar as antigas terras da
cristandade (nomeadamente aquelas que haviam pertencido aos visigodos de quem
os reis ibéricos se consideravam descendentes directos) e ancorando-se todos os
actos de conquista nos baluartes teológicos da Igreja católica, isto é, na
teorização de Santo Agostinho e na de São Tomás Aquino. Nesta medida e tal como
lembra Michelan, as diferentes crónicas retomam sucessivamente tópicos
utilizados pelos antecessores, nomeadamente: a história como mestra da vida,
a referência e/ou a analogia às personagens antigas e bíblicas, a defesa do
combate aos cismáticos e sarracenos, as menções às profecias, a constante
referência à intervenção da providência divina, a ênfase sobre a lamentação dos
mouros após as vitórias cristãs e a narrativa centrada nos monarcas». In Natália
Albino Pires, A imagem do outro na Crónica
da Tomada de Ceuta pelo rei João I de Gomes Eanes de Zurara Revista
Medievalista, Nº 20, JUL-DEZ, 2016, ISSN 1646-740X.
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