rmedievalista
Com a devida vénia
«No
passado dia 19 de Fevereiro morreu em Milão Umberto Eco, com 84 anos. Figura de
referência na cultura contemporânea, Eco incarnou o espírito e a acção do
intelectual-social do século XX. Reconhecido e respeitado pela sua vastíssima
erudição, desde a sua tese de doutoramento sobre São Tomás de Aquino até aos
estudos na área da Semiótica, da Filosofia ou da Estética, nunca deixou de
estar atento aos fenómenos da cultura de massas que marcam os nossos dias. Foi
assim com a banda desenhada ou com o impacto dos media, e particularmente
da televisão, sem esquecer o império da Internet, face ao qual o seu espírito
crítico se manifestou por vezes de forma impiedosa. Ficaram célebres, por
exemplo, as acutilantes considerações acerca dos efeitos da Internet e das
redes sociais na imbecialização dos incautos. Figura mediática por excelência e
à escala global, Umberto Eco nunca se fez rogado na utilização de tal estatuto
para dar voz às suas opiniões em matérias culturais, mas também sociais e
políticas. Poucos meses antes da sua morte, numa entrevista ao semanário
português Expresso, falava desassombradamente, em nome de princípios
humanistas e solidários, sobre as ondas de refugiados que demandavam uma Europa
insensível e desarticulada. O saber e o rigor de Eco não eram inimigos do humor
e da ironia. O cruzamento da mais densa temática filosófica da Idade Média com
a estrutura do livro policial, como ocorre por exemplo n’ O Nome da Rosa, sem
dúvida o romance que mais o celebrizou, confere um lado lúdico à sua obra
ficcional. Mas até num livrinho à partida de assunto árido e desinteressante,
como o célebre Como se Faz uma Tese em Ciências Humanas, cuja edição
original italiana é de 1977 e que na sua tradução portuguesa de 1980 teve uma
enorme influência na formação de sucessivas gerações de estudantes
universitários na área das Ciências Sociais e das Humanidades no nosso país, o
Autor consegue explicar de forma desempoeirada, concreta e prática os cânones
do ofício, abordando questões tão prosaicas como as notas de rodapé, a
elaboração de um plano-índice ou a apresentação da bibliografia num trabalho
académico. A obra que dirigiu em quatro volumes, sobre A Idade Média,
editada entre nós pela Dom Quixote, revela-nos a sensibilidade polifacetada de
um Umberto Eco atento às mais recentes tendências da investigação. E não por
uma questão de moda, mas pelo estimulante desejo de tudo relacionar, pela quase
ânsia de tudo perceber, desde as estruturas materiais às formas do pensamento,
da arte e da religiosidade, desde a viagem por espaços físicos ao imaginário
das utopias. No seu testamento, Eco pediu aos colegas e a todos os que lhe eram
próximos para não promoverem, autorizarem ou participarem em colóquios ou
outros eventos públicos de qualquer espécie sobre a sua personalidade e a sua
obra durante os dez anos que se seguirão à sua morte. Os mais afoitos na
apropriação dos legados alheios tiveram e terão, pois, de se conter. Umberto
Eco vale pelo que disse, escreveu e fez, muito mais do que pelo que dele se
possa dizer. E se aqui o evocamos é pelo que lhe devemos, não pelo que nos
possa render. Sem querermos pôr-nos em bicos de pés, estes são, à nossa medida,
ecos de um Eco maior. Pelo que aqui fica dito e pelo que não cabe dizer, na Medievalista
consideramos Umberto Eco como um daqueles gigantes a cujos ombros queremos
subir para podermos enxergar mais além. Para vermos de modo mais nítido os longínquos
tempos medievais, é certo. Mas também para entendermos melhor o nosso próprio
tempo. Como Umberto Eco não se cansou de fazer». In Ecos de um Eco Maior, A
Redacção, Revista Medievalista, Nº 20, JUL-DEZ, 2016, ISSN 1646-740X.
Cortesia
de RMedievalista/JDACT