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De acordo com o original
Na quinta das Chãs
«(…)
Maneiras e palavras, pesadas com fina discreção, estavam desculpando a cada
passo as sombras que por mais d’uma vez denunciavam não ser impeccavelmente
crystalina a reputação das açafatas da rainha dona Maria I. Entrou o fidalgo e
logo correu a morgada a perguntar-lhe anciosamente: que noticias nos traz vossa
senhoria? Boas, senhora morgada, se póde haver boas noticias quando a tempestade,
que se descondensa n’um ponto, ameaça n’outro. Inda bem! Inda bem! Apostrophou
a morgada relanceando um olhar d’alegria á porta do quarto onde estava
descançando a neta. O padre capellão, sem se dar o incommodo de desculpar a
ligeireza com que alinhavara as suas orações, appareceu mordido de curiosidade.
E o caso é que pensei que das indagações já não sobrava tempo para o nosso
voltarete!, disse o Teixeira sentando-se a um gesto da morgada. Venho tarde, e
porei por desculpa da demora o bom empenho que tinha em poder satisfazer a
justa anciedade de vossa senhoria. Não obstante serem boas as informações,
supplico-lhe que não aggrave as côres do quadro, dado que entre por ahi de
improviso a minha neta, que se recolheu aos seus quartos, por ordem minha, para
não ser testemunha auricular da narrativa no caso de que fosse lugubre. Os
francezes foram repellidos heroicamente, disse o fidalgo baixando a voz. Vamos
a isso!, atalhou o padre capellão fungando uma pitada. O fidalgo proseguiu: os
francezes não ousaram metter-se ao Minho, que vae de monte a monte, com a agua
que tem caído, por se arreceiarem da cheia. Trouxeram por terra os barcos que
puderam obter na Guardia, e puzeram-n’os a nado no Tamuge. Que artes teem os
malditos!, exclamou o capellão lembrando-se de que não haveria thesouro que
resistisse á astucia franceza. Deixe ouvir..., observou a morgada. Eram vinte e
tantos os barcos, que pretendiam abicar á praia do Camarido. Trez separaram-se,
ao descer o rio, e chegando primeiro á praia, os soldados desembarcaram. Os
outros barcos tiveram que luctar, e muito, contra a maré que lhes era adversa.
Isto durou toda a noite. Só hontem de madrugada foi que o Champalimaud percebeu
claramente a tentativa do inimigo, e que mandou fazer fogo de fuzilaria. Um dos
barcos foi a pique; outro despedaçou-o o mar. Os francezes dos trez primeiros
barcos refugiaram-se no Camarido. Estes desastres deram alento aos paisanos, que
se embarcaram para atacar o inimigo no rio, protegidos pela artilharia da Areia
Grossa e da Insua, e pelos soldados do 21. Os francezes, contrariados pela
correnteza das aguas e pela resistencia dos nossos, retrocederam para a margem
direita do Minho, desesperando d’atravessal-o. Então bateram os nossos a matta
do Camarido, encontrando dentro mais de trinta francezes, um dos quaes consta
ser capitão e haver declarado o nome do general em chefe de todo o exercito.
Chama-se Soult o general...
Elles
tambem escolhem-n’os pelos nomes!, interrompeu o padre para quem toda a
prosodia era difficil, incluindo a latina e a..., portugueza. Os paisanos,
segundo se dizia em Braga, fizeram proezas, continuou placidamente o fidalgo.
Até as mulheres acudiram com fouces roçadouras e forcados. Nunca as mãos lhes
dôam..., observou impudentemente o capellão. Pelo meio dia atacaram os
francezes Villa Nova da Cerveira, sendo ainda repellidos brilhantemente pelos
nossos, tropa e povo. Mas, senhora morgada, o que mais dava que falar era a
coragem de trez rapazes de Valença, que se arrojaram a ir encravar um morteiro,
que os francezes tratavam de assestar contra a praça. Isto é o que se sabe
desde manhã; o que já se terá passado pertence a Deus e aos que estão em armas.
Mas que lhe parece a vossa senhoria: entrarão ou não entrarão? perguntou a
morgada. Para que nos havemos de illudir com mentirosas esperanças? Os invasores
são poderosos e por mais d’uma parte poderão entrar, ao passo que os nossos,
divididos para guarnecerem as fronteiras, perdem muito de sua força n’essa
mesma divisão. Com que então não se fala por ora em guerra! disse de improviso
a morgada ouvindo abrir a porta do quarto d’Augusta. O fidalgo já não teve
tempo de responder porque sentiu na sala os passos da menina. Então não ha
guerra? exclamou Augusta com graciosa innocencia. Não ha, não ha, respondeu
amavelmente o fidalgo; a não ser a do nosso voltarete. E continuou, convidando
a morgada a sentar-se: permitta-me vossa senhoria, senhora morgada que eu
continue a assestar a bateria dos codilhos contra a muralha de preferencias do
nosso reverendo. Então, padre capellão, quer sentar-se?... Em que estava pensando
tão absorto?» In Alberto Pimentel, O Anel Misterioso,
Cenas da Guerra Peninsular, Empreza da História de Portugal, Lisboa, Sociedade
Editora Livraria Moderna,1904.
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