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Servos
da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da
Catalunha
«(…)
Pere Esteve tomou Francesca pelo braço e aproximou-se mesa, para a entregar a
Bernat. A rapariga tremia. Senhor, disse Bernat, apresento-vos a minha mulher, Francesca.
Assim está melhor, comentou Llorenç, examinando-a de alto a baixo, sem nenhum recato,
muito melhor. Vais tu servir-nos o vinho, a partir de agora. O senhor de
Navarcles voltou a sentar-se e dirigiu-se à rapariga, erguendo o copo.
Francesca pegou num jarro e acorreu a servi-lo. A mão tremia-lhe, ao tentar
verter o vinho. Llorenç de Bellera agarrou-lhe o pulso e manteve-lho firme
enquanto o vinho caía no copo. Depois, puxou-lhe o braço e obrigou-a a servir
os seus acompanhantes. Os seios da rapariga roçaram pelo rosto de Llorenç de
Bellera. Assim é que se serve o vinho!, gritou o senhor de Navarcles enquanto
Bernat, ao lado dele, cerrava os punhos e os dentes. Llorenç de Bellera e os
seus amigos continuaram a beber e a exigir, aos gritos, a presença de Francesca,
para repetir, uma e outra vez, a mesma cena. Os soldados juntavam-se aos risos
do seu senhor e dos amigos de cada vez que a rapariga se via obrigada a
inclinar-se sobre a mesa para servir o vinho. Francesca tentava conter as
lágrimas e Bernat notava como o sangue começava a correr-lhe nas mãos, feridas
pelas suas próprias unhas. Os convidados, em silêncio, desviavam o olhar de
cada vez que a rapariga tinha de servir o vinho. Estany ol!, gritou Llorenç de
Bellera, pondo-se de pé com Francesca agarrada pelo pulso. Usando do direito
que como teu senhor me assiste, decidi deitar-me com a tua mulher na sua
primeira noite. Os acompanhantes do senhor de Bellera aplaudiram ruidosamente
as palavras do amigo. Bernat saltou para a mesa, mas antes que a pudesse
alcançar, os dois sequazes, que pareciam embriagados, puseram-se de pé e
levaram as mãos às espadas. Bernat estacou. Llorenç de Bellera olhou-o, sorriu,
e depois riu com força. A rapariga cravou os olhos em Bernat, suplicando a
ajuda dele.
Bernat
deu um passo adiante, mas encontrou a espada de um dos amigos do nobre
encostada ao estômago. Impotente, deteve-se de novo. Francesca não parou de
olhar para ele enquanto era arrastada até à escada exterior da casa. Quando o
senhor daquelas terras a agarrou pela cintura e a colocou a um ombro, a
rapariga começou a gritar. Os amigos do senhor de Navarcles voltaram a
sentar-se e continuaram a beber e a rir, enquanto os soldados se colocavam
junto à escada, para impedir o acesso a Bernat. Ao pé das escadas, em frente
aos soldados, Bernat não ouviu as gargalhadas dos amigos do senhor de Bellera;
nem os soluços das mulheres. Não se juntou ao silêncio dos seus convidados, e nem
sequer deu atenção às provocações dos soldados, que faziam gestos, de olhos
postos na casa: só ouvia os gritos de dor que vinham da janela do primeiro
andar. O azul do céu continuava a resplandecer. Depois de momentos que
pareceram intermináveis a Bernat, Llorenç de Bellera apareceu, transpirado, na
escada, apertando a cota de caça. Estany ol, gritou com a sua voz tonitruante
enquanto passava ao lado de Bernat e se dirigia para a mesa, agora toca-te a
ti. Dona Catarina, acrescentou para os seus acompanhantes, referindo-se à sua
jovem e recente mulher, já está cansada de que apareçam filhos meus
bastardos..., e já não aguento as choraminguices dela. Cumpre como um bom
marido cristão!, instou-o, voltando-se para ele. Bernat baixou a cabeça e, sob
o olhar atento de todos os presentes, subiu lentamente a escada lateral.
Entrou no primeiro andar, numa ampla sala que servia de cozinha e sala de
jantar, com uma grande lareira numa das paredes, sobre a qual repousava uma
impressionante estrutura de ferro forjado, em jeito de chaminé. Bernat escutou
o som dos seus próprios passos sobre o chão de madeira enquanto se dirigia à
escada de mão que levava ao segundo andar, destinada a celeiro e quarto de
dormir. Assomou a cabeça pelo orifício das tábuas do chão do andar superior e
escrutinou o interior sem se atrever a subir totalmente. Não se ouvia um único
ruído. Com o queixo rente ao chão, e o corpo ainda na escada viu a roupa de
Francesca espalhada pela divisão; a camisa branca de linho, orgulho da família,
estava rasgada e feita num farrapo. Por fim, subiu. Encontrou Francesca
encolhida em posição fetal, com o olhar perdido, totalmente nua sobre a enxerga
nova, agora manchada de sangue. O corpo da rapariga, suado, arranhado aqui e golpeado
ali, permanecia absolutamente imóvel. Estany ol, ouviu Llorenç de Bellera a
gritar lá de baixo, o teu senhor está à espera». In Ildefonso Falcones, A Catedral
do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-251-511-5.
Cortesia de
BertrandE/JDACT