jdact
O
Outono da Saudade
«(…)
Dona Guiomar dá pela minha chegada. Como lhe sugeri ao entregar-lhe de novo os
escritos que me confiara, daí talvez a minha empáfia, tira-os de sob o mantéu para
os colocar rente ao peito da Senhora Infanta, debaixo das mãos, dispondo outras
folhas como pétalas gigantes pelo caixão, à frente de toda a gente. As cabeças
que antes pendiam para o chão erguem-se com vigor, olhares arregalados. Alguns
mais incisivos, de figuras até agora insuspeitas, parecem queimar o maço das
escrituras atadas com fita carmim, quando a dama se retira para trás. Devem
arder de curiosidade misturada com raiva por nunca as terem descoberto, mas
tocar-lhes no lugar onde se encontram, jamais. Seria profanar o corpo de uma
princesa real.
Da
luz das tochas emergem fantasmas de negro em estranhas coreografias. Panos pretos
forram as paredes, o catafalco, o féretro, projectam-se na alma do povo
representado pelas damas, pelos servidores dos Paços da Ribeira e Santa Clara,
prolongam-se no rosto do povo ainda no meu rosto, um bobo ignorado por todos
mal passa o efeito das chocarrices, perdido em cogitações que bem queria
afastar e se esgueiram pelos intervalos do recolhimento. Já chegaram alguns
representantes da corte de Espanha alertados antes da morte, outros que depois
disso viajaram toda a noite, as mudas de cavalos prontas na fronteira para
evitar atrasos. Destacam-se à frente das carpideiras que soluçam orações
discretas porque Sua Senhoria não tolerava exibições de dor, pior ainda,
simulação de sentimentos. Como tantas vezes nos lembrava a verdadeira saudade chora-se
em silêncio. Com estas palavras na ideia procuro diluir-me entre os demais,
envolto na minha dor, mas outras lembranças acodem, outras vozes e olhares dos
que me reconhecem, apesar disso, e me apontam.
Volto
a cair na tentação da arrogância, eu, um pobre bobo reduzido ao eco da minha
voz. Alguma coisa devo ter aprendido para saber que os meus dotes, o dom de ter
privado com a princesa, não enfrentam a luz de nenhuma ribalta, só o discreto
tremular de candeias a fazerem dançar sombras na laje, sombras no meu
pensamento. Avizinha-se longe um rumor cada vez mais intenso, mais perto..., aqui.
Cortesãos e fidalgos de sobrepeliz carregado, mangas tufadas em brilhantes
gibões pretos, chapéus de plumas negras na mão, damas chorosas de mongil
vestidas ou com seus melhores mantéus, levantam-se numa revoada de tecidos e
bancos a ranger. Primeiro lançam olhares dissimulados para os lados, para trás,
depois repetem as vénias fundas que começam na entrada e se vão sucedendo, como
pedras sobrepostas de um jogo a cair.
Aproxima-se
o solene cortejo que traz a liteira real de dona Catarina, muito entrada nos
anos. Descarregam-na com cuidado diante do féretro, já a dirigir aos fidalgos
presentes uma saudação velada, aos nobres de Espanha um olhar mais acolhedor.
Talvez até uma mensagem, a julgar pelo ar pouco toldado com que prontamente
correspondem... Mais do que a saudade da filha adoptiva devem pesar-lhe as
desavenças com o neto, sempre ausente entregue à montada fora de Lisboa, nos
intervalos do descanso na alcáçova do Alentejo, nas coutadas de Almeirim. Nunca
ela teria pensado que a morte da sobrinha, filha da irmã que seu real marido nunca
conseguiu esquecer, havia de acontecer antes da sua. Mas não é a dor que lhe
carrega o semblante, é um certo ressentimento por tanto povo acudir aos
funerais, de rosto molhado por lágrimas mais fartas do que aquelas que acompanharam
outros membros da família real. Talvez alguns não saibam ler todas as rugas da
face, mas um bobo conhece cada uma como a palma da mão. Só o riso é novo,
quando brota, de resto nasce velho.
Quando
a rainha vinha, ainda regente, passar temporadas a Enxobregas para fugir ao
ruído da Ribeira, não me escapavam olhares furtivos de pouca ternura que ia lançando
à Infanta, que por sua causa deixara o conforto da própria moradia. Sabia recompor-se
quando era surpreendida, como se uma corrente fria a tivesse atingido com força
inesperada. E quando recebia mensageiros de monarcas europeus, com quem a princesa
era capaz de sustentar uma conversa em fluente latim, algum despeito lhe escapava
da mímica e dos gestos por não ter, ela mesma, essa destreza. As vistas largas do
Tejo, ao fundo, mostrado com orgulho aos visitantes, diluíam esse veneno
natural que não era capaz de anular, como agora não consegue, apesar de tudo, negar
o mesmo sangue e uma ponta de tristeza». In Maria Helena Ventura, A Musa de Camões,
Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-940-6.
Cortesia de
SdeEmergência/JDACT