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O
Outono da Saudade
«(…)
É a filha adoptiva que parte... Soubera ela o que estava por vir e teria
amenizado, com mais amena convivência, a dureza da sua tão proclamada piedade. Primou
pela arrogância, exerceu pesada influência em El Rei para agradar a Castela, ao
irmão imperador e depois ao sobrinho. Muito dano causou à Senhora Infanta. A voz
do capelão-mor dá início às cerimónias fúnebres enquanto mais pessoas vão
desafiando a capacidade do espaço. Com os soluços a aumentarem de tom volto a passar
os olhos pelos presentes, lá à frente, depois pelos que me rodeiam, cá atrás, em
recíprocas cotoveladas para conseguirem ver a cara do capelão. Conheço a história
de quase todos, identifico tanto quem representa a dor como a plangente saudade.
Como a daquele homem no fundo da nave, do meu lado direito, a tentar embrulhar-se
no anonimato com uma rosa murcha na mão. É de meia estatura, bem constituído,
barba e cabelo mais grisalhos do que ruivos, com o olho direito vazado. À medida
que tenta esconder-se cresce no respeito que sempre lhe tive, o respeito que justificou
que o tivesse ajudado a entrar em Santa Clara, há mais de cinco lustros. Já então
corriam sobre a sua vida boatos de desventura, ousadia, e muito engenho para as
rimas.
Claros
raios de sol, formosos olhos
que as
chaves ambas tendes da minha alma
Durante
o tempo que passou na Índia alimentei a esperança de o ver chegar melhor de vida,
consumar o amor com Sua Senhoria. Mas vejo hoje que só por milagre voltaria ao paço
com livre permissão para animar serões e cortejá-la. Voltou pobre como partiu, doente,
desiludido pela constância da má sorte. Só a publicação da história dos portugueses
em 1572, poeticamente lavrada em oitava rima, lhe trouxe sumida glória, o privilégio
de uma tença de quinze mil réis anuais por alvará de El Rei Sebastião. Não lhe deve
ter escapado o empenho da Infanta junto de Sua Alteza, o sobrinho, os pedidos ao
cardeal, seu irmão e inquisidor mor... A obra acabou por ser recompensada,
ainda que humildemente, depois de ser poupada aos cortes da censura.
Só
nos últimos anos, com mais tempo para meditar Camões percebeu o labor constante
do seu anjo da guarda. Foi o que me pareceu, quando há dias me garantiu estar pronto
a dar uma ajuda para lhe amenizar o sofrimento. Não foi a tempo. Agora aqui está,
amparado por um homem que dizem ser o criado que trouxe do Oriente, outros que um
amigo de posses lhe ofereceu. António, como lhe chamam, Jau por ter vindo da ilha
de Java. dizem por aí. Parece que menos lhe importa o nome do que servir de bom
protector a seu amo. Segue-o de longe, com sua identidade e aspecto estranhos,
estranheza acentuada pelo facto de ninguém o ter mencionado a bordo da nau que trouxe
ao reino o poeta. A figura pode denunciar origem exótica, mas o português que
fala torna-o filho da nação, um filho de pele escura amarelada, cabelo farto e negro
a encobrir o pescoço, na fina expressão uma dignidade pouco comum em lacaios.
Anda
sempre com receio do amo atrair outra desgraça maior, a perseguição de uma alma
atormentada, como lhe garantem as raízes do culto animista que mantém, às escondidas.
Devota-lhe há mais de três pares de anos a fidelidade de um familiar muito chegado,
e não precisa fixá-lo muitas vezes para lhe perceber a natureza dos
sentimentos. É ele que me segreda mais tarde como o poeta soube da repentina morte
de Sua Senhoria no convento de S. Domingos, aonde vai por hábito desde as conversas
com frei Bartolomeu Ferreira, revisor da Inquisição (maldita). Um dos frades
mais velhos, ao corrente do seu afecto pela Senhora Infanta, passou-lhe a notícia
sem esperar o profundo abalo, como se o tivesse atingido uma pedra na cabeça. Ainda
ofereceu ajuda quando o viu cambalear, mal refeito do choque, porem Camões afastava-se
do convento numa despedida silenciosa. Nunca mais conseguiu apaziguar o coração,
amparado aos muros do claustro enquanto descansava das muletas. Varriam-se-lhe da
ideia as conversas teológicas, as pequenas alegrias com o sucesso de Os Lusíadas,
razão mais grata da sua existência. Só o roseiral fresco no jardim interior lhe
demandou atenção, a recolha de uma flor». In Maria Helena Ventura, A Musa de Camões,
Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-940-6.
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