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Uma carta escrita pela minha mão
«(…) É certo que essas
obras dedicadas ao ensino das mulheres das classes altas tinham sido na maioria
das vezes inspiradas pelas melhores intenções, e que havia mais de um século
que os seus autores se tinham esforçado por acentuar o valor intelectual desses
conhecimentos. Mas quase todas tinham sido escritas por homens, na sua maioria
clérigos. Por isso, o seu desejo era quase sempre o de tentar moldar os
comportamentos e atitudes das adolescentes para, que respeitassem o valor da
castidade, virtude suprema das mulheres e inclusivamente dos humanistas
realmente interessados na educação feminina. A honestidade e a vergonha eram as
outras duas virtudes principais que se exigiam a uma mulher naquela época,
qualquer que fosse a sua origem social. Complementares entre si, a primeira era
absolutamente necessária, uma vez que faltasse era como se ao homem faltassem
todas.
Tudo isto se resumia
numa frase então muito em voga e que muito depois andaria na boca de muitos
súbditos castelhanos de Joana: o homem para ser bom basta-lhe ser bom, ainda
que não o pareça. Mas a mulher para ser boa não lhe basta parecer boa, tendo
também de ser boa. Uma espécie de releitura, em código cristão, do velho adágio:
a mulher do César não só deve ser honesta como também deve parece-lo. Em finais
de 1449, quando a corte se encontrava em Évora, ocorreram em Lisboa os
primeiros incidentes graves contra a minoria judaica de que há registo no reino
de Portugal no século XV. Desconhece-se se as infantas Catarina e Joana se
encontravam nesse momento na capital do reino ou se se tinham deslocado para o
Alentejo com a corte do seu irmão. De qualquer modo, a proximidade física do
lugar onde ocorreram os factos (a chamada judiaria velha, na actual baixa,
de Lisboa), com o lugar onde elas residiam habitualmente e, sobretudo, as
contínuas e qualificadas relações da sua mãe, do seu irmão Afonso e do seu tio
Henrique, o Navegador (?), com alguns membros conspícuos da linhagem dos Yahia
ou Negro, permitem supor que esses acontecimentos não passariam despercebidos
às infantas. Mais difícil é saber que grau de influência teriam na configuração
da mentalidade da mais nova delas a respeito de pessoas provenientes de uma
minoria religiosa, alguns membros da qual chegariam a ter uma influência decisiva
na vida íntima da futura rainha de Castela.
De qualquer modo, as
tensões religiosas que se viviam em Lisboa não impediram Afonso V de continuar
a recompensar os antigos servidores que tinham acompanhado a mãe ao exílio e
que, por lhe serem fiéis, tinham sofrido não apenas o afastamento da sua terra
natal como também a confiscação das suas propriedades. Entre eles encontrava-se
Pedro Góis, filho do antigo prior do Crato, a quem, depois de regressar de
Roma, o irmão de Joana doou, em 1450, o castelo da Lousã, no ducado de Coimbra,
expropriado a um partidário do antigo regente. Este castelo daria origem ao
apelido da filha ilegítima que tivera com a donzela da mãe da infanta: uma
criança que anos mais tarde seria donzela de Joana em Castela. Apagados os ecos
de Alfarrobeira e sufocadas as revoltas antijudaicas de Lisboa, em Junho de
1450 foram retomadas as negociações de casamento de Frederico III da Alemanha.
Fora então decidido que a escolhida para se converter na primeira das duas
imperatrizes proveniente da casa de Avis fosse a infanta Leonor.
Começando a cumprir a
promessa, que fizera à irmã, de casar as infantas, o rei Alfonso V de Aragão
escreveu naquela altura ao sobrinho, Afonso V de Portugal, para lhe comunicar
que o imperador Frederico determinara o dia 15 de Agosto seguinte para que os
emissários alemães se encontrassem com ele em Nápoles. Por essa razão, e porque
desejamos a conclusão do dito matrimónio, se a vós vos convier ao notificar-vos
das ditas coisas vos pedimos que, sendo a vós agradável o dito matrimónio, nos
mandeis os vossos embaixadores plenamente instruídos sobre o dito negócio. Para
tal fim, o rei de Portugal acabaria por enviar a Nápoles João Fernandes Silveira,
homen Fydalgo, prudente e gram letrador. O facto de ter sido Leonor a
escolhida indica, provavelmente, que, além da opinião das damas austríacas a
respeito da virtude dessas jovens, se preferira seguir a tradição de casar
primeiro a mais velha delas. Algo que, em teoria, implicava que, antes de se
casar, Joana teria de esperar que o fizesse primeiro a sua irmã Catarina. É
possível que um acontecimento ocorrido do outro lado da fronteira tenha
adiantado essa possibilidade». In A Rainha Adúltera, Joana de Portugal e o
Enigma da Excelente Senhora, Crónica de uma difamação anunciada, Marsilio
Cassotti, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.
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