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«(…) Um tema tipicamente naturalista, a
dominação do padre na família pela sua influência na mulher, surge nas suas
crónicas de Londres, em Julho de 1877. Suscitado igualmente pela recensão
literária, é particularmente revelador o juízo de Eça de Queirós sobre uma obra
de divulgação de métodos anti-concepcionais: um manual cómodo e à mão de desmoralização
e de deboche. A persistente tendência misógina; esta terminante condenação do
amor não procriativo; as referências algo galhofeiras às criadas chantagistas
londrinas e ao escândalo da prostituição; duas alusões jocosas (uma das quais
bastante desenvolvida) ao lesbianismo, compõem, nestes textos jornalísticos,
uma atitude de distância simultaneamente folgazã e moralista em relação ao
prazer e à irregularidade erótica, inconsequentes mas sintomáticas anedotas de
um quotidiano pré-catastrófico. A novidade é que este quotidiano seja o de uma
Inglaterra que Eça, agora, sente conhecer do interior, tal como no tempo em
que, falando de Lisboa, se dirigia aos seus leitores do Distrito de Évora. É
agora Londres a cidade em véspera de catástrofe. Mesmo a mulher inglesa também
desgosta Eça de Queirós, justamente pelo excesso daquela qualidade que, n’As
Farpas, o atraía, a virilidade: basta observar um pouco as maneiras da inglesa
moderna para se ver que ela poderá ser tudo, uma hábil cavaleira, uma excelente
atiradora à pistola, um óptimo companheiro de viagem, um atrevido parceiro para
uma partida de bacarat, tudo, menos uma esposa e uma mãe. (1 de Agosto de 1877)~
A tendência para a dissociação entre o
prazer e a família, a emancipação institucional do prazer (os quais estiveram
provavelmente na raiz da feroz condenação, por Eça, dos meios contraceptivos),
que, para o autor, a mulher inglesa agora prefigura, torna-o aqui um crítico
violento do vigor e da excessiva afirmatividade feminina, a desordem erótica da
mulher é meio caminho andado para a catástrofe moral inglesa. Quando, nos Ecos
de Paris, em 6 de Junho de 1880, a propósito da morte súbita de Flaubert (que
ocorrera cerca de um mês antes), Eça de Queirós comenta Madame Bovary, é para
sublinhar ainda esta identificação entre a decadência e o essencial
desequilíbrio do eros feminino. E, da mesma forma, quando define o projecto de
L’ Education Sentimentale, é fácil ler nesta representação uma projecção
ideológica clara, encontrando numa geral síndrome feminizante da cultura
pós-romântica a causa central de todas as instabilidades da vida social.
A representação de uma actualidade em
decomposição, dominada por uma sensualidade desorganizada, terá, num efeito de
contraponto que já conhecemos, reconvocado em Eça a nostalgia de uma ordem
ideal e de uma harmonia superior, valores cuja rarefacção conceptual seja uma
forma de pureza. E, por outro lado, o apego desiludido aos valores simples e
humanos, como a solidariedade. Um agape democrático, eis a forma sucedânea, na
sua última década de vida, desse amor natural, suavemente abençoado por Deus
nas noites de S. João, evocada trinta anos antes. E o louvor irónico-lírico da doce
atmosfera do sul, aqui, como já o fora no Distrito de Évora, pode igualmente
integrar-se no esquema ascensional desta nostalgia da brandura, regida por uma
instância superior e benfazeja. Esta tendência refluente da sua última fase
determina, também, a evocação cada vez mais insistente dos primeiros
românticos, e dos valores da naturalidade e simplicidade artísticas. Não se estranha,
portanto que, chegado o momento crepuscular do Naturalismo, Eça de Queirós
possa, com desenvoltura, reconhecer em Positivismo e Idealismo que,
provavelmente, o romance experimental nunca existiu. E, mais uma vez, as novas
formas, já não as do decadentismo, mas do idealismo, primam pela
irregularidade. Agora que a alma está na moda, a poesia e as artes plásticas
diluem a representação da realidade física, esbatendo-lhe a consistência. Ou
seja: mais uma vez, para Eça, a nova arte comunga do crepúsculo e do caos: os
traços que ela privilegia, os do incorpóreo, resolvem-se numa global
representação do inorgânico. A representação marcadamente virilizante do
Positivismo-Razão vai adensar-se, sublinhando por contraste o cariz feminizante
do polo oposto, o do Idealismo-Imaginação. A este regime exclusivo da oposição
e da disjunção dos dois elementos, seguir-se-á agora, segundo Eça, uma espécie
de conjunção alternada e regimental, que não parecerá deslocado designar por adultério
ideal: a causa é patente, está toda no modo brutal e rigoroso com que o
positivismo científico tratou a imaginação, que é uma tão inseparável e
legítima companheira do homem como a razão. O homem de todos os tempos tem tido
(se me permitem renovar essa alegoria neoplatónica) duas esposas, que são ambas
ciumentas e exigentes, o arrastam cada uma, com lutas por vezes trágicas e por
vezes cómicas, para o seu leito particular (…) O positivismo científico, porém,
considerou a imaginação como uma concubina comprometedora, de quem urgia
separar o homem; e, apenas se apossou dele, expulsou duramente a pobre e gentil
imaginação, fechou o homem num laboratório a sós com a sua esposa clara e fria,
a razão. O resultado foi que o homem recomeçou a aborrecer-se monumentalmente e
a suspirar por aquela outra companheira tão alegre, tão inventiva, tão cheia de
graça e de luminosos ímpetos, que de longe lhe acenava ainda, lhe apontava para
os céus da poesia e da metafísica, onde ambos tinham tentado voos tão
deslumbrantes». In Ana Luísa Vilela, Erotismo Queirosiano, Universidade de Évora,
ContraNatura, Wikipedia.
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