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De Malines
a Espanha, com Ida para Portugal
«(…)
Já nessa altura o futuro rei de Espanha contava com Leonor para os seus avanços
diplomáticos e políticos, colocando-a no último reduto da Europa para se poder virar
para norte: França, Alemanha, Países Baixos, Itália, sem temer algum ataque do vizinho
português. Submissa, fraterna, destituída de si, dona Leonor fez caminho para Espanha
atrás do irmão com aviso de recepção em Portugal. A viagem efectuou-se por mar,
contornando a costa francesa, galega e portuguesa, para depois subir o Mediterrâneo
até Vilaviciosa, um lugar no principado de Oviedo, onde chegou a 17 de Setembro
de 1517. Para além das obrigações institucionais, a viagem revestiu-se de
outras razões sentimentais, pois dona Leonor há muito que não via a mãe, desde que
ela se mudara definitivamente para Espanha, em 1506. Ora, o afastamento traz saudades,
preocupações também, mais ainda quando a notícia que corria dava dona Joana como
incapaz para tratar do governo do reino, pois sua mãe a rainha dona Joana não estava
com inteiro juízo para poder governar. O encontro foi perturbador. Sujeitas ao cerimonial
cortesão, mãe e filha trocaram os salamaleques inevitáveis, mesuras e deferências,
mas tocarem-se, abraçarem-se ou beijarem-se, gestos que significariam ligações afectivas
fortes, isso não. A longa separação gerara desafeição, enfraquecera os sentimentos,
debilitara os comportamentos.
Se, por
um lado, Leonor procurava mostrar-se neutral, à espera que algum calor lhe chegasse
ao coração, dona Joana, por outro, reflectia uma indiferença mansa, incapaz de transferir
para a filha outro sinal que não o do desapego. Frente a frente, não lhes
chegou a ternura da natalidade, como se ao cortar do cordão umbilical ambas perdessem
o encantamento. De certo modo também não comungavam o mesmo verbo, havia embaraço
nas palavras, gerando-se alguns desentendimentos entre o que diziam e o que gostavam
de ouvir. É verdade que a rainha já pouco usava o lado repressor da consciência,
sem se importar com o que acontecia à sua volta. Não tinha também a capacidade da
dissimulação, evidenciava uma tranquilidade ausente, todos os seus gestos estavam
fora das representações razoáveis. Esta imagem feriu os olhos e os sentimentos dos
filhos, em particular de Leonor, já que Carlos só queria era ultrapassar mais uma
etapa para tomar posse do interminável reino de Espanha.
Diante
da ausência de emoções que a progenitora revelava, dona Leonor de Áustria, em
vez de lhe fazer chegar ao coração alguma ternura, accionou-lhe o juízo manifestações
de protecção quando ao lado da mãe viu pela primeira vez a irmã Catarina. Olhava-a,
e o que via na menina de dez anos era um ser pouco desenvolto, sobretudo se visto
à luz do modo exuberante da sua própria educação. Habituada a uma corte sofisticada
e culta, dona Leonor arrepiava-se quando a mana falhava nos modos e nas acções,
na aparência pouco cuidada e no silêncio tímido a que se remetia. Catarina começava
a despertar para os novos desafios da vida, era por isso necessário substituir a
fanática educação religiosa que as aias lhe imprimiam para agradar à mãe. Amar a
Deus, sim, com quase todas as forças, não todas, porque na paixão que nunca negaria
à divindade havia alguns limites. Quando Leonor abraçou a irmã, bateu-lhe na alma
um profundo carinho, uma transmissão de afecto que não sentira diante da mãe. Preocupada
também pelo pouco desenvolvimento da infanta, depois de consultar o irmão,
decidiu afastá-la do seio maternal.
Não obstante
a enfraquecida capacidade cognitiva de dona Joana, uma grande mágoa assentou sobre
ela quando lhe foi revelada a intenção de lhe levarem a menina. Chorou, contorceu-se,
fez dos recursos físicos os argumentos que não encontrava no cérebro, de modo a
enfraquecer a vontade da filha mais velha. Aparentemente, as manifestações de
afecto e rejeição manifestadas não foram suficientes para alterar a sentença de
dona Leonor. Estava decidido, dona Catarina viajaria daí por diante com os irmãos,
tomariam conta da sua educação, transmitir-lhe-iam a visão do mundo e da sociedade
que a tia Margarida lhes havia ministrado, e não se falava mais nisso. Escusava
a mãe de se amarfanhar ou gastar os joelhos no genuflexório, porque a princesa precisava
de cuidados e ninguém melhor do que Leonor os poderia transmitir». In
Jorge Sousa Correia, A Traição de D Manuel I, Clube do Autor, Lisboa, 2015,
ISBN 978-989-724-262-5.
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