terça-feira, 29 de novembro de 2016

As Viúvas de dom Rufia. Carlos Campaniço. «Logo depois taparam dom Rufia com uma manta que lhe deixou os sapatos à mercê do escuro. Pelo meio, o único interrogatório possível foi o da velhinha Chica Laura…»


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«Estava o céu murcho no dia em que morreu dom Rufia. Ninguém julgou que se conciliava a meteorologia com uma certa tristeza divina, porque até o mais poucachinho dos homens percebera a vontade de um Inverno firme. A luz diurna, intimidada pelo negro das nuvens, sombreava as gentes que se comichavam à porta do defunto. Das ruas vizinhas, das casas mais distantes, de toda a aldeia de Fernão Baixo, vinha gente, em passo aberto, empunhando aquela curiosidade difícil de disfarçar. Depressa a casa se encheu de géneros humanos, de idades e de profissões. Para o velório, para aquele imprevisto velório, faltava apenas o morto, que dormia demoradamente num chão frio em terras de campo. Não o podem trazer para casa sem autorização da Guarda, prevenia o padre Xermano, enquanto acomodava as carnes ricas em sestas numa cadeira que alguém lhe trouxera até ao começo de uma mão estendida. Mesmo que os que cacarejavam a desventura do morto ficassem sob o telhado do céu, ainda aceso por uma luzinha de tarde, o padre preferiu o da casa baixinha do infeliz, pois mesmo aquela impotente claridade lhe fazia comichões insuportáveis, gatanhando a pele macia de uma Galiza de homens claros. A habitação pouco asseada, como eram as dos homens sozinhos daquela época, tinha uma sala de entrada pequena; um quarto onde só podia pertencer um enxergão de palha e uma mesa-de-cabeceira; e uma divisão interior destinada ao lume e às refeições, na qual havia cinza suficiente para emparedar a aldeia. Ao fundo, estava uma porta baixinha, luxuosa em buracos e fabricos de aranha, donde se podia adivinhar o quintal. Se por aí se saísse, impunha-se um mato de décadas, ervas virgens e esplendorosas que subiam o mais que podiam sem o acanho das visitas humanas. Apenas uma clareira, onde se supunha que dom Rufia aliviava as águas, parecia não prosperar entre aquele festival de salubridade silvestre. Quando o padre abriu a porta do quintal, fazendo caso da sua bexiga, urinou no preciso local das ervas baixas e então percebeu a fidelidade do morto àquele santuário, que permitia um alívio sem picadelas. O Sol, agasalhando-se como é sua obrigação, deixava, entretanto dom Rufia à mercê de uma geada implacável, que haveria de vitrificar as poças de água, de murchar as folhas das laranjeiras e de reduzir a salsa a um seco de inutilidade. Mas o que preocupava as gentes tranquilizaria, certamente, o falecido, uma vez que se supõe que os ossos desempregados de vida não temem temporais. Não obstante se adivinhar que o frio congelaria tudo, os seis soldados da Guarda Nacional Republicana não deixaram que se levantasse o corpo enquanto não ficassem apuradas as circunstâncias do assassinato. Mediram a distância a que eventualmente se dera o disparo, deram passos largos com medidas de metro, indo um comprovar o cálculo do anterior, estudaram o desenho das pegadas, mas tantas as vezes o fizeram que só sobrou o das botas negras da novel República, perguntaram a gentes de montes e de caminhos quem haviam visto por ali, mas tanto esforço em vão deixava-as divididas sobre de quem ter mais compaixão, se do morto, se dos investigadores. Foi assim até a noite mandar mais do que a persistência humana. Logo depois taparam dom Rufia com uma manta que lhe deixou os sapatos à mercê do escuro. Pelo meio, o único interrogatório possível foi o da velhinha Chica Laura que nessa manhã o achara dormido para sempre, sem mugir dor ou acção, misturando o último sangue com a água nocturna das ervas, dando-se isso quando recolhia uns ramos de azinho para o lume. A velhota, enfadada com as perguntas, tentando desenvencilhar-se daqueles homens obrigatórios, declarou que, com efeito, a melhor testemunha do caso era o Alfaiate, que com suas ventas de cão encontrara morto dom Rufia. Porém, logo retorquiu o cabo que, para o bem ou para o mal, os donos tinham sempre de responder pelos seus animais. Sonolenta e velha, Chica Laura encolheu os ombros, encolheu-se e disse e redisse o que podia: encontrara-o assim e logo que avistara Fernão Baixo chamara a vizinhança. Os seis homens, dos melhores soldados às ordens do cabo Catarino Bacalhau, desabafavam com as gentes que a República estabelecia a ordem até no mais recôndito alqueive da nação. Os curiosos aldeões, embora com uma fome de palmo, não arredaram pé até o cabo tirar uma prepotência da boca, decretando aos presentes que fossem imediatamente para suas casas». In Carlos Campaniço, As Viúvas de dom Rufia, 2016, Casa das Letras, Grupo Leya, 2016, ISBN 978-989-741-491-6.

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