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«Estava
o céu murcho no dia em que morreu dom Rufia. Ninguém julgou que se conciliava a
meteorologia com uma certa tristeza divina, porque até o mais poucachinho dos
homens percebera a vontade de um Inverno firme. A luz diurna, intimidada pelo negro
das nuvens, sombreava as gentes que se comichavam à porta do defunto. Das ruas vizinhas,
das casas mais distantes, de toda a aldeia de Fernão Baixo, vinha gente, em passo
aberto, empunhando aquela curiosidade difícil de disfarçar. Depressa a casa se encheu
de géneros humanos, de idades e de profissões. Para o velório, para aquele imprevisto
velório, faltava apenas o morto, que dormia demoradamente num chão frio em terras
de campo. Não o podem trazer para casa sem autorização da Guarda, prevenia o padre
Xermano, enquanto acomodava as carnes ricas em sestas numa cadeira que alguém lhe
trouxera até ao começo de uma mão estendida. Mesmo que os que cacarejavam a desventura
do morto ficassem sob o telhado do céu, ainda aceso por uma luzinha de tarde, o
padre preferiu o da casa baixinha do infeliz, pois mesmo aquela impotente claridade
lhe fazia comichões insuportáveis, gatanhando a pele macia de uma Galiza de homens
claros. A habitação pouco asseada, como eram as dos homens sozinhos daquela época,
tinha uma sala de entrada pequena; um quarto onde só podia pertencer um enxergão
de palha e uma mesa-de-cabeceira; e uma divisão interior destinada ao lume e às
refeições, na qual havia cinza suficiente para emparedar a aldeia. Ao fundo, estava
uma porta baixinha, luxuosa em buracos e fabricos de aranha, donde se podia adivinhar
o quintal. Se por aí se saísse, impunha-se um mato de décadas, ervas virgens e esplendorosas
que subiam o mais que podiam sem o acanho das visitas humanas. Apenas uma clareira,
onde se supunha que dom Rufia aliviava as águas, parecia não prosperar entre aquele
festival de salubridade silvestre. Quando o padre abriu a porta do quintal, fazendo
caso da sua bexiga, urinou no preciso local das ervas baixas e então percebeu a
fidelidade do morto àquele santuário, que permitia um alívio sem picadelas. O Sol,
agasalhando-se como é sua obrigação, deixava, entretanto dom Rufia à mercê de uma
geada implacável, que haveria de vitrificar as poças de água, de murchar as folhas
das laranjeiras e de reduzir a salsa a um seco de inutilidade. Mas o que
preocupava as gentes tranquilizaria, certamente, o falecido, uma vez que se supõe
que os ossos desempregados de vida não temem temporais. Não obstante se adivinhar
que o frio congelaria tudo, os seis soldados da Guarda Nacional Republicana não
deixaram que se levantasse o corpo enquanto não ficassem apuradas as circunstâncias
do assassinato. Mediram a distância a que eventualmente se dera o disparo,
deram passos largos com medidas de metro, indo um comprovar o cálculo do anterior,
estudaram o desenho das pegadas, mas tantas as vezes o fizeram que só sobrou o das
botas negras da novel República, perguntaram a gentes de montes e de caminhos quem
haviam visto por ali, mas tanto esforço em vão deixava-as divididas sobre de quem
ter mais compaixão, se do morto, se dos investigadores. Foi assim até a noite mandar
mais do que a persistência humana. Logo depois taparam dom Rufia com uma manta
que lhe deixou os sapatos à mercê do escuro. Pelo meio, o único interrogatório possível
foi o da velhinha Chica Laura que nessa manhã o achara dormido para sempre, sem
mugir dor ou acção, misturando o último sangue com a água nocturna das ervas,
dando-se isso quando recolhia uns ramos de azinho para o lume. A velhota, enfadada
com as perguntas, tentando desenvencilhar-se daqueles homens obrigatórios,
declarou que, com efeito, a melhor testemunha do caso era o Alfaiate, que
com suas ventas de cão encontrara morto dom Rufia. Porém, logo retorquiu o cabo
que, para o bem ou para o mal, os donos tinham sempre de responder pelos seus animais.
Sonolenta e velha, Chica Laura encolheu os ombros, encolheu-se e disse e redisse
o que podia: encontrara-o assim e logo que avistara Fernão Baixo chamara a vizinhança.
Os seis homens, dos melhores soldados às ordens do cabo Catarino Bacalhau,
desabafavam com as gentes que a República estabelecia a ordem até no mais recôndito
alqueive da nação. Os curiosos aldeões, embora com uma fome de palmo, não arredaram
pé até o cabo tirar uma prepotência da boca, decretando aos presentes que fossem
imediatamente para suas casas». In Carlos Campaniço, As Viúvas de dom Rufia,
2016, Casa das Letras, Grupo Leya, 2016, ISBN 978-989-741-491-6.