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Nisto, com a alentejana pronúncia de pôr graça até nas situações mais adversas,
um dos presentes descuidou as palavras na língua: está visto que fica tudo em águas
de bacalhau. De imediato se ouviu uma gargalhada gorda por cima da multidão. Ora,
o viril cabo, disciplinador até no aprumo dos seus homens, determinou prontamente
a prisão de Marcelino Piolho por não admitir zombarias com o seu nome, tampouco
conclusões apressadas sobre a investigação. Do pó da multidão ficou apenas Armindo
Costureira, imune às ordens do cabo. Armindinho, Armindinha, Costureira ou Costureirinha,
todos os nomes na boca do povo lhe assentavam como as roupas femininas com que andava
por casa: justas e de outra natureza. Numa terra de homens rudes, fingia-se um deles
e punha seu colete e sua cinta, colonizando-se, e seu chapéu e sua jaqueta. Só os
gestos mais pronunciados o denunciavam entre os demais homens daquele coro curioso.
Tinha os olhos emudecidos, humedecidos também, preso à terra por um medo que não
sabia descrever. O mando do cabo não chegou até si, porque as suas boas
atenções estavam no passado vivido com o morto. Foi preciso um bom grito de um dos
guardas e um aceno de indignação para que acordasse do seu letargo de saudades.
Então lá foi, campo fora, que a aldeia se fazia escura, dando desacostumados passos
em terra tão crua. Enquanto se afastava com sua jaqueta escura e o seu corpo magro,
o cabo Catarino Bacalhau olhava-o a desaparecer-se entre os cabeços, fixando-lhe
a melancolia. Naquele tempo, Fernão Baixo não tinha Guarda, pelo que os zelosos
soldados vieram todos da vila de Moura, mandados chamar à pressa, visto ser coisa
rara haver um morto matado nos chãos do concelho. De presenças fugazes, os soldados
causavam sempre grande reverência às gentes do campo; era como se a República e
os novos tempos acompanhassem a patrulha ocasional. Como o carteiro, que trazia
pedaços de outros mundos dentro do saco, a Guarda trazia a esperança de que melhores
tempos, por melhores ideias, estariam para chegar, ainda que se lhe notassem já
alguns autoritarismos. Porém, naquele dia em que apareceram na aldeia com Marcelino
Piolho preso de mãos, para o levarem para os calabouços de Moura, à custa de graça
tão vulgar, os olhares e os modos não foram já os mesmos. Metia dó ver o Piolho
atado ao rabo do cavalo com pavor das patas altas do bicho, coisa que um
verdadeiro piolho ou afim na arte de parasitar certamente não teria. Dois guardas
ficaram encarregados de fazer a vigília a dom Rufia até meio da noite, os outros
dois cumpriram a outra metade, enquanto o cabo Bacalhau deitara seu rabo, que pelo
que se pôde assistir não era de fiel-amigo, numa cama de ocasião nas acomodações
da Junta de Freguesia. Os restantes dois soldados passaram a noite a vigiar o Piolho
numa devoluta prisão da Guarda Real, um anexo da mesma casa da Junta de Freguesia.
Se aquela fosse gente instruída, conhecedora das histórias dos homens desde a antiguidade,
poderia ter pensado que a vigília militar ao cadáver era a mais inútil das
acções desde os dias em que Ícaro tentara subir aos céus. Dir-nos-ia, com esta comparação
de mostrar sabedoria, que dali não fugiria o morto, muito menos haveria quem o quisesse
em sua própria casa. Esta afoiteza, por não ter existido, nunca chegou aos ouvidos
do temido cabo. A casa do falecido que se abrira, de porta em par, para receber
o velório sem morto tinha cada vez mais veladores, como era o hábito de então. Dom
Rufia tinha uma irmã algures no mundo, mas esta e os seus pretensos filhos não o
podiam chorar neste dia. Ela havia emigrado muito nova para lá do oceano, julgando-se
estar em terras argentinas, mas não era isso certeza para uma teima. Assim, os únicos
parentes do falecido eram os tios maternos, Homero Dente d'Alho e sua irmã Maria
Teresina. À luz das velas, e apertados nas cadeiras que tinham trazido para a casa
do morto, os rostos amarelados dividiam-se quanto à proveniência do tiro. De
marido cabrão era a convicção geral, pois bem poucos achavam que fosse paga de
negócio. Num desses instantes em que ninguém diz palavra e se pode ouvir o ruído
do pensar alheio, um homem já de idade, que se esfregava de sono na face, disse
qualquer coisa para se acordar e lamentou que, no dia da sua morte, se continuasse
a chamar dom Rufia ao malogrado. Se Rufia fora nome bem merecido em vida, naquela
fria posição campestre o homem devia designar-se apenas pelo nome próprio ou
pela sua condição de morto». In Carlos Campaniço, As Viúvas de dom Rufia,
2016, Casa das Letras, Grupo Leya, 2016, ISBN 978-989-741-491-6.
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