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e wikipedia
O
corpo. A igreja. O pecado
«(…)
E reclamava:
Lavar a carne é desgraça
em toda a parte do Norte
porque diz, que dessa sorte
perde a carne o sal, a graça;
e se vós por essa traça
lhe tirais o passarete
o sal, a graça, o cheirete,
em pouco a dúvida topa
se me quereis dar a sopa
dai-ma com todo o sainete».
O
cheiro de almíscar ainda agradava por estes lados do Atlântico, onde o bidet
só aportou no século XIX. Mas lavar o corpo, com quê? Um pedaço de sabão era
bem inestimável. Que o diga certo Baltasar Dias, em 1618. Ao ver que fora
roubado do seu, trazido com dificuldade na caravela que o levara da cidade do
Porto para Pernambuco, deu de dizer palavras de cólera e que o Diabo o levasse
de seu corpo, numa explosão de rara fúria. Conclusão? Foi denunciado à Inquisição
(maldita) por blasfêmia. Embora
longe da higienização de nossos dias, certa sensibilidade ao cheiro do corpo ia
se instalando. Os processos de divórcio apresentados à Igreja Católica revelam
traços da intolerância de certos cônjuges em função do odor. O mau cheiro
impedia suas relações sexuais. Em São Paulo, na segunda metade do século XVIII,
por exemplo, Ana Luísa Meneses acusava o cônjuge de pitar tabaco de fumo, que
lhe conferia um terrível hálito que se faz insuportável a quem dele participa.
E Maria Leite Conceição reclamava dos pés e pernas inchadas do seu, das quais
exalava um mau cheiro insuportável. Como se vê, o embate conjugal não passava
longe de alguns critérios de sensibilidade feminina.
Deitar
onde?
E
onde se exerciam os rituais de intimidade? Um viajante inglês responde: as
casas têm em geral três ou quatro andares. Internamente, essas residências são
muito mal mobiliadas, ainda que muitas delas tenham quartos adornados com
bonitas pinturas. As moradas até podiam ser belas, mas seu interior raramente
era limpo. Os aposentos, por vezes, eram varridos com uma espécie de vassoura
feita com bambu. Água no chão? Nunca. As paredes das casas, raramente pintadas uma
segunda vez depois da caiação original, tornavam-se amarelas. Os cubículos dos
quartos quase nunca eram abertos à acção purificadora do ar livre, nem tampouco
expostas as camas, embora húmidas de suor. A fim de tornar os quartos
toleráveis e deles expulsar os miasmas de que se acham penetrados, costumam se
queimar substâncias odoríferas logo antes da hora de se recolher. Tais odores também
mantinham afastados, por curto espaço de tempo, os atacantes invisíveis: mosquitos,
baratas, percevejos e outras imundícies. Os detritos só eram removidos uma vez por
semana. Os penicos estavam em toda a parte e seu conteúdo, sempre fresco, era
jogado nas ruas e praias. Decididamente, não era esse o ambiente ideal para
encontros eróticos, como os concebemos hoje.
Nas
classes populares, a privacidade era um luxo que ninguém tinha. Dormia-se em
redes, esteiras ou em raríssimos catres compartilhados por muitos membros da
família. Os cómodos serviam para tudo: ali recebiam-se os amigos, realizavam-se
os trabalhos manuais, rezava-se, cozinhava-se e dormia-se. A precariedade não
dava espaço para o leito conjugal, essa encruzilhada do sono, do amor e da
morte. Entre os poderosos, a multiplicação de quartos nas residências não
significava garantia de privacidade. Todos davam para o mesmo corredor e raramente
tinham janelas. Ouvidos indiscretos estavam em toda a parte. Frestas nas
paredes permitiam espiar. Chaves eram artefactos caríssimos e as portas,
portanto, não se trancavam. Na alcova podia haver uma cama coberta por mosquiteiro,
colchão rijo, travesseiros redondos e chumaços, e excelentes lençóis. Elemento
de ostentação nas casas ricas, a cama traduzia um nível de vida: a conquista do
tempo e da liberdade. Mas, para suas intimidades, os casais sentiam-se mais à
vontade pelos matos, nas praias, nos campos, na relva. Longe dos olhos e
ouvidos dos outros.
Nessa
época, na Europa, as camas com baldaquino, com as cortinas fechadas, ofereciam
a possibilidade de isolamento. Aqui, só chegaram mais tarde, aparecendo nos
ex-votos de madeira dos finais do século XVIII.
Respeitava-se a regra: ao trocar de roupa, ninguém olhava. Na Europa, graças à
criação da sala de banhos e do boudoir,
se reuniram as condições de exercício de uma nova forma de erotismo. Entre nós,
porém, o penico vigorou até os fins do século XIX, empestando o ambiente. Quanto ao asseio e às regras de
civilidade, contudo, havia muito que aprender. Os moradores da Colónia ainda
estavam muito próximos de comportamentos julgados selvagens na Europa. Lá,
desde a Idade Moderna, já se desaconselhava arrotar ou peidar em público. Na época
das reformas religiosas, no século XVI,
nos vários manuais de civilidade publicados
graças
ao aparecimento da imprensa, se recomendava apertar os glúteos com força, não deixando
escapar nada de mau gosto». In Mary del Priore, Histórias íntimas,
Sexualidade e erotismo na história do Brasil, Editora Planeta do Brasil, São
Paulo, CDD-302-309-81, 2011, ISBN 978-857-665-608-1.
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