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«(…) Eu e a Cathy éramos amigas na
universidade. Meias-amigas, aliás: nunca fomos assim tão chegadas. Ela vivia no
quarto em frente ao meu no primeiro ano, e andávamos no mesmo curso, por isso
fomos aliadas naturais naquelas primeiras semanas assustadoras antes de conhecermos
pessoas com quem tivéssemos mais em comum. Não nos vimos muito uma à outra após
aquele primeiro ano e quase nunca depois do curso, tirando algum casamento
esporádico. Porém, na minha hora de aperto, ela tinha por acaso um quarto livre
a arrendar, e fazia sentido que eu ficasse com ele. Tinha a certeza de que
seria só por um ou dois meses, no máximo seis, e não sabia o que fazer. Nunca tinha
vivido sozinha, tinha passado da casa dos meus pais para o apartamento com os
colegas e depois com o Tom; achei a ideia irresistível, por isso aceitei.
Entretanto passaram-se quase dois anos.
Não é horrível. A Cathy é uma pessoa simpática,
de uma maneira algo forçada. Faz-nos sempre reparar que está a ser simpática. É
uma simpatia agressiva, é aquilo que a distingue de toda a gente, e ela sente que
tem de ser reconhecida por isso, muitas vezes, quase diariamente, o que se pode
tornar cansativo. Contudo não é assim tão mau, consigo lembrar-me de defeitos
piores numa companheira de casa. Não, não é a Cathy, não é sequer Ashbury que
me incomoda mais na minha nova condição (ainda a considero nova, apesar de se terem
passado dois anos). É ter perdido o controlo. No apartamento da Cathy, não
consigo deixar de me sentir uma convidada à mercê dos limites da sua hospitalidade.
É o que sinto na cozinha, quando disputamos o espaço para fazer o jantar. É o que
sinto quando me sento ao lado dela no sofá, o comando ao alcance ostensivo das mãos
dela. O único lugar que me sabe a meu é o pequeno quartinho onde enfiámos uma cama
de casal e uma secretária, tão acanhado, que quase não dá para passar. É suficientemente
confortável, mas não é um sítio onde nos apeteça estar, de maneira que eu me
vou deixando ficar na sala ou sentada à mesa da cozinha, pouco à vontade e de braços
cruzados. Perdi o controlo sobre tudo, até sobre os lugares dentro da minha cabeça.
Quarta-feíra,10 de Julho de 2013
Manhã
O calor está a aumentar. Ainda pouco passa das 8 e meia e o dia já está abafado, o ar saturado de humidade. Eu bem podia pedir uma tempestade, mas o céu está insolentemente limpo e azul. Enxugo o suor do rosto. Quem me dera ter comprado uma garrafa de água. Não consigo ver o Jason e a Jess hoje de manhã, e sinto uma tremenda desilusão. É idiota, eu sei. Perscruto a casa, mas não há nada para ver. As cortinas estão abertas cá em baixo, mas as portas duplas estão fechadas, com o sol a reflectir-se nos vidros. A janela de guilhotina do primeiro andar também está fechada. Pode ser que o Jason esteja fora em trabalho. Ele é médico, acho eu, provavelmente numa daquelas organizações internacionais. Está constantemente de prevenção, com a mala feita no cimo do roupeiro; basta haver um terramoto no Irão ou um maremoto (tsunami) na Ásia para largar tudo, agarrar na mala e se meter no aeroporto de Heathrow em menos de nada, pronto para apanhar o avião e ir salvar vidas. A Jess, com os seus vestidos garridos e os ténis Converse e toda a sua beleza, a sua atitude, trabalha na indústria da moda. Ou talvez esteja ligada à música ou à publicidade: pode ser estilista ou fotógrafa. É uma excelente pintora, também, com uma veia artística. Estou mesmo a vê-la, no quarto de hóspedes lá em cima, com a música aos berros, a janela aberta, um pincel na mão, uma tela enorme encostada à parede. Há-de lá ficar até à meia-noite; o Jason sabe perfeitamente que não a pode incomodar quando ela está concentrada. É claro que não a estou a ver. Não sei se ela pinta mesmo, ou se o Jason tem uma bela gargalhada, ou se a Jess tem as maçãs do rosto bonitas. Não lhe consigo ver bem a cara daqui, nem nunca sequer ouvi a voz do Jason. Nunca os vi de perto, eles não moravam na casa quando eu vivia na rua. Mudaram-se depois de eu me ter ido embora há dois anos, não sei bem quando. Acho que comecei a reparar neles há cerca de um ano, e pouco a pouco, à medida que os meses foram passando, eles acabaram por se tornar importantes. Também não sei como se chamam, por isso tive de lhes dar nomes. Jason, porque ele é bonito ao estilo de uma estrela de cinema inglesa, não como um Depp ou um Pitt, mas sim como um Firth ou um Jason Isaacs. E Jess, só porque condizia com Jason, e o nome assenta-lhe bem. É bonito e despreocupado como ela. Fazem um bom par, aqueles dois. São felizes, dá para ver. São tal como eu era antigamente, o Tom e eu, há cinco anos. São aquilo que eu perdi, tudo o que eu sempre quis ser». In Paula Hawkins, A Rapariga no Comboio, 2015, tradução de José Leiria, Topseller, 20/20 Editora, 2015, ISBN 978-989-880-054-1.
Manhã
O calor está a aumentar. Ainda pouco passa das 8 e meia e o dia já está abafado, o ar saturado de humidade. Eu bem podia pedir uma tempestade, mas o céu está insolentemente limpo e azul. Enxugo o suor do rosto. Quem me dera ter comprado uma garrafa de água. Não consigo ver o Jason e a Jess hoje de manhã, e sinto uma tremenda desilusão. É idiota, eu sei. Perscruto a casa, mas não há nada para ver. As cortinas estão abertas cá em baixo, mas as portas duplas estão fechadas, com o sol a reflectir-se nos vidros. A janela de guilhotina do primeiro andar também está fechada. Pode ser que o Jason esteja fora em trabalho. Ele é médico, acho eu, provavelmente numa daquelas organizações internacionais. Está constantemente de prevenção, com a mala feita no cimo do roupeiro; basta haver um terramoto no Irão ou um maremoto (tsunami) na Ásia para largar tudo, agarrar na mala e se meter no aeroporto de Heathrow em menos de nada, pronto para apanhar o avião e ir salvar vidas. A Jess, com os seus vestidos garridos e os ténis Converse e toda a sua beleza, a sua atitude, trabalha na indústria da moda. Ou talvez esteja ligada à música ou à publicidade: pode ser estilista ou fotógrafa. É uma excelente pintora, também, com uma veia artística. Estou mesmo a vê-la, no quarto de hóspedes lá em cima, com a música aos berros, a janela aberta, um pincel na mão, uma tela enorme encostada à parede. Há-de lá ficar até à meia-noite; o Jason sabe perfeitamente que não a pode incomodar quando ela está concentrada. É claro que não a estou a ver. Não sei se ela pinta mesmo, ou se o Jason tem uma bela gargalhada, ou se a Jess tem as maçãs do rosto bonitas. Não lhe consigo ver bem a cara daqui, nem nunca sequer ouvi a voz do Jason. Nunca os vi de perto, eles não moravam na casa quando eu vivia na rua. Mudaram-se depois de eu me ter ido embora há dois anos, não sei bem quando. Acho que comecei a reparar neles há cerca de um ano, e pouco a pouco, à medida que os meses foram passando, eles acabaram por se tornar importantes. Também não sei como se chamam, por isso tive de lhes dar nomes. Jason, porque ele é bonito ao estilo de uma estrela de cinema inglesa, não como um Depp ou um Pitt, mas sim como um Firth ou um Jason Isaacs. E Jess, só porque condizia com Jason, e o nome assenta-lhe bem. É bonito e despreocupado como ela. Fazem um bom par, aqueles dois. São felizes, dá para ver. São tal como eu era antigamente, o Tom e eu, há cinco anos. São aquilo que eu perdi, tudo o que eu sempre quis ser». In Paula Hawkins, A Rapariga no Comboio, 2015, tradução de José Leiria, Topseller, 20/20 Editora, 2015, ISBN 978-989-880-054-1.
Cortesia de
Topseller/JDACT