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A
Igreja não é o Vaticanismo
«(…)
Muitas vezes, porém, esta perspectiva sofre desvios e é feita em pedaços pela
plebe e pela autoridade hierárquica. Por isso, quando se fala de Igreja,
facilmente se resvala para se referir apenas o seu vértice, como se fosse a
única expressão constitutiva e selectiva desejada e querida por Nosso Senhor,
balanceando no ar como uma estalagmite. Não só os teólogos do Renascimento, mas
também os do nosso tempo gostam de pensar a base dos fiéis como um amorfo
rebanho de ovelhas, curvado humildemente perante o pastor. Assim, quando se
fala de Igreja, tal referência tem mais que ver com o vértice hierárquico
composto pelo conjunto de papa, cardeais, bispos, cúria romana e altos prelados,
investidos de autoridade e de poder, que se gastam em nada na erosão do tempo e
que muito frequentemente se esquecem de se pôr em questão, confrontando a sua
missão com a de Cristo que se anulou na cruz exactamente para servir a
humanidade. Elipse teológica em voga a que correspondem expressões erradas: a
Igreja quer, a Igreja não quer; a Igreja permite, a Igreja não permite; a Igreja
ordena, a Igreja obriga; a Igreja aprova, a Igreja desaprova; a Igreja proíbe,
a Igreja admite; a Igreja confirma aquele fenómeno, a Igreja não encontra nada
de sobrenatural naquela aparição ou naquela pessoa. E quando assim falam, sabem
que estão a referir-se a certos homens e eclesiásticos que exercem e manobram
as alavancas do poder naquela altura e que, como protagonistas que julgam ser,
já demonstraram muitas vezes estar a pronunciar-se erroneamente sobre certas
verdades históricas respeitantes a fenómenos e a pessoas.
Mas
é aqui que está a dicotomia do pensamento. Por um lado, afirma-se que a
Igreja somos nós todos juntos, autoridades e fiéis e, por conseguinte, qualquer
ferida infligida a um dos seus membros é infligida-directamente a todo o seu
corpo místico. Mas, por outro lado, quando alguns dos seus membros, profetas de
qualquer maneira interessados na compaixão do Cristo místico, denunciam a
infecção cancerígena, são apostrofados como insubordinados e rebeldes,
suspeitos heréticos, semeadores de cizânia, homens e mulheres a silenciar, não
obstante vir a reconhecer-se, à distância do tempo e com arrependimentos
inúteis e perdões tardios, terem-se enganados nos seus juízos. Mas a quem faz
jeito calar a todos para que ninguém intervenha? Não é certamente para deixar
tudo como antes, para que quem erra continue a errar? Pelo contrário, a Igreja ou
é tudo em conjunto, base, lados e vértice, ou não é a Igreja que Cristo
desejou. Cristo não fundou a sua Igreja com um poder de governo de dominação
incontrolada. A Igreja de Cristo tem apenas um modo de governar: colocar-se
ao serviço. Os dignitários, os cardeais, os príncipes, se de príncipes se
pode falar, não deveriam ter qualquer outra ambição, alguma outra aspiração e
nenhuma outra pretensão: entre vós, porém, o exercício do poder não é assim,
mas aquele que quer ser grande entre vós faça-se vosso servidor, e quem quer
ser o primeiro entre vós seja o servo de todos.
A
Igreja de Jesus, quando se torna serva, é a mais completa obra divina, colocada
como protecção de toda a sociedade humana. Não pode, todavia, ser infinita como
Deus, sendo Sua obra ad extra. Por princípio teológico, Deus é o
infinito. A Igreja, pelo contrário, é obra divina, mas finita. Por isso, não
tem o carisma de poder reconhecer todos os infinitos carismas de Deus. Se
conhecesse a omnipotência infinita de Deus, isso significaria ser o seu
contentor, por abranger o Infinito. Eis que os céus e os céus dos céus não podem
conter-te, ainda menos esta casa que eu construí. Não é possível, nem mesmo a
Deus, criar uma instituição contingente e ao mesmo tempo capaz de circunscrever
a sua infinitude: criaria, por absurdo, um outro deus dominador. Os nossos
esquemas, infinitamente estreitos, mesmo os da Igreja, não poderiam conter num
invólucro a infinita omnipotência do Criador». In I Millenari, Via col vento in
Vaticano, Kaos Edizioni, 1999, O Vaticano contra Cristo, tradução de José A.
Neto, Religiões, Casa das Letras, 2005, ISBN 972-46-1170-1.
Cortesia
Casa das Letras/JDACT