sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Poderes Invisíveis. O Imaginário Medieval. José Mattoso. «Estes pressupostos permitem compreender melhor o sentido dos rituais que materializam o culto dos mortos. Os mais importantes creio que se podem agrupar em cinco categorias…»

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«(…) É por isso que os vivos se preocupam tanto com a salvação eterna dos finados, particularmente dos seus familiares: a salvação é, afinal de contas, o repouso eterno, ou seja, a ausência de inquietação, a garantia de que o morto não precisa de afligir os vivos e que o sono eterno lhe traz a propensão para a benevolência. O medo dos mortos suscita também uma grande quantidade de rituais que consistem, de alguma maneira em imobilizar o cadáver (decapitá-lo, atar-lhe as pernas, pregar-lhe os pés, amontoar pedras sobre a sepultura, colocar lajes sobre o túmulo, etc.), em provocar a saída imediata do seu espírito, em impedir que o seu espírito regresse ao corpo, tapando cuidadosamente todos os seus orifícios, etc. As próprias práticas de louvor do morto, as oferendas, os cuidados de ornamentação do túmulo podem, consciente ou inconscientemente, ter como razão ultima o desejo de que o morto permaneça quieto e contente para não perturbar os vivos. A preocupação com a delimitação da fronteira entre mortos e vivos levou, em várias civilizações, a situar os cemitérios e as necrópoles fora dos lugares habitados. E a expressão mais clara desse cuidado. Noutras, porém, nomeadamente na ocidental, prevaleceu o hábito de sepultar os mortos (pelo menos aqueles que têm poder suficiente para escolher o local do enterramento) nas igrejas, como forma de garantir a salvação da alma por meio da privacidade com o sagrado. As igrejas inicialmente privilegiavam os enterramentos cristãos nas basílicas onde colocavam as relíquias dos mártires, por serem igrejas tumulares, e se situavam frequentemente fora da cidade. Mais tarde, as relíquias dos santos foram também colocadas em igrejas urbanas. A afluência de sepulturas ad sanctos fez com que só os mais poderosos, ou as autoridades eclesiásticas, conseguissem ficar dentro da igreja. O comum dos fiéis ficava no adro, que era ainda considerado rito sagrado. A aparente anomalia que constitui o enterramento no interior do espaço habitado explica-se, neste caso, pela convicção de que a proximidade física com o sagrado garantia a salvação da alma. A grande quantidade de rituais que a Igreja criou, para envolver os seus mortos com a protecção divina, originou a convicção de que eles faziam parte dos eleitos e, portanto, por vezes ameaça real os vivos cuidavam da sua protecção. O medo da morte física transferiu-se para o medo da morte espiritual, de que os espíritos malignos eram portadores. Só os mortos em pecado são verdadeiramente ameaçadores.
Estes pressupostos permitem compreender melhor o sentido dos rituais que materializam o culto dos mortos. Os mais importantes creio que se podem agrupar em cinco categorias, conforme se destinam a evitar a contaminação do reino dos vivos pelo reino dos mortos; se concentram no acto de passagem da vida para a morte; procuram garantir o destino final do morto; tentam impedir que o morto faça a transmissão do poder; procuram conseguir a preservação da memória. Como se verá ao tratar de cada conjunto, esta classificação não consegue criar grupos estanques. Há muitos rituais que podem exercer funções duplas ou triplas; a ambivalência das crenças que mencionámos antes e a contiguidade entre os conceitos de meão do morto e de captação da sua benevolência são noções que explicam a pluralidade de sentidos da maioria dos rituais. Já mais acima demos alguns exemplos claros de rituais destinados a estabelecer a maior separação possível entre a vida e a morte». In José Mattoso, Poderes Invisíveis, O Imaginário Medieval, 2001, Temas e Debates, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-644-233-0.

Cortesia de TDebates/JDACT