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«(…) É por isso que os vivos se preocupam tanto com a salvação eterna
dos finados, particularmente dos seus familiares: a salvação é, afinal de
contas, o repouso eterno, ou seja, a ausência de inquietação, a garantia de que
o morto não precisa de afligir os vivos e que o sono eterno lhe traz a
propensão para a benevolência. O medo dos mortos suscita também uma grande
quantidade de rituais que consistem, de alguma maneira em imobilizar o cadáver
(decapitá-lo, atar-lhe as pernas, pregar-lhe os pés, amontoar pedras sobre a
sepultura, colocar lajes sobre o túmulo, etc.), em provocar a saída imediata do
seu espírito, em impedir que o seu espírito regresse ao corpo, tapando cuidadosamente
todos os seus orifícios, etc. As próprias práticas de louvor do morto, as
oferendas, os cuidados de ornamentação do túmulo podem, consciente ou inconscientemente,
ter como razão ultima o desejo de que o morto permaneça quieto e contente para
não perturbar os vivos. A preocupação com a delimitação da fronteira entre
mortos e vivos levou, em várias civilizações, a situar os cemitérios e as
necrópoles fora dos lugares habitados. E a expressão mais clara desse cuidado.
Noutras, porém, nomeadamente na ocidental, prevaleceu o hábito de sepultar os
mortos (pelo menos aqueles que têm poder suficiente para escolher o local do
enterramento) nas igrejas, como forma de garantir a salvação da alma por meio
da privacidade com o sagrado. As igrejas inicialmente privilegiavam os enterramentos
cristãos nas basílicas onde colocavam as relíquias dos mártires, por serem
igrejas tumulares, e se situavam frequentemente fora da cidade. Mais tarde, as
relíquias dos santos foram também colocadas em igrejas urbanas. A afluência de
sepulturas ad sanctos fez com que só os mais poderosos, ou as autoridades
eclesiásticas, conseguissem ficar dentro da igreja. O comum dos fiéis ficava no
adro, que era ainda considerado rito sagrado. A aparente anomalia que constitui
o enterramento no interior do espaço habitado explica-se, neste caso, pela
convicção de que a proximidade física com o sagrado garantia a salvação da
alma. A grande quantidade de rituais que a Igreja criou, para envolver os seus
mortos com a protecção divina, originou a convicção de que eles faziam parte dos
eleitos e, portanto, por vezes ameaça real os vivos cuidavam da sua protecção. O
medo da morte física transferiu-se para o medo da morte espiritual, de que os
espíritos malignos eram portadores. Só os mortos em pecado são verdadeiramente
ameaçadores.
Estes pressupostos permitem compreender melhor o sentido dos rituais
que materializam o culto dos mortos. Os mais importantes creio que se podem
agrupar em cinco categorias, conforme se destinam a evitar a contaminação do
reino dos vivos pelo reino dos mortos; se concentram no acto de passagem da
vida para a morte; procuram garantir o destino final do morto; tentam impedir
que o morto faça a transmissão do poder; procuram conseguir a preservação da
memória. Como se verá ao tratar de cada conjunto, esta classificação não
consegue criar grupos estanques. Há muitos rituais que podem exercer funções
duplas ou triplas; a ambivalência das crenças que mencionámos antes e a contiguidade
entre os conceitos de meão do morto e de captação da sua benevolência são noções
que explicam a pluralidade de sentidos da maioria dos rituais. Já mais acima
demos alguns exemplos claros de rituais destinados a estabelecer a maior
separação possível entre a vida e a morte». In José Mattoso, Poderes
Invisíveis, O Imaginário Medieval, 2001, Temas e Debates, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-644-233-0.
Cortesia de TDebates/JDACT