jdact
«(…) Tenho a camisa desagradavelmente
apertada, os botões espremidos contra o peito, com manchas de suor pegajoso
debaixo dos braços. Doem-me os olhos e a garganta. Esta tarde não quero que a viagem
se arraste; só me apetece chegar a casa, despir-me e enfiar-me no duche, onde ninguém
pode olhar para mim. Olho para o homem sentado no lugar à minha frente. Deve ter
a minha idade, 30 e poucos anos, com o cabelo preto, já um pouco grisalho de lado.
Um ar macilento. Trazia um fato vestido, mas tirou o casaco e poisou-o no banco
ao seu lado. Têm um MacBook finíssimo aberto à frente dele. É lento a escrever.
Tem um relógio prateado com um mostrador enorme no pulso direito: parece caro, talvez
seja um Breitling. Vai roendo o interior das bochechas. Talvez esteja nervoso. Ou
só a pensar profundamente. A escrever um e-mail importante para um colega no escritório
de Nova lorque, ou a medir bem as palavras para acabar com a namorada. Levanta a
cabeça de repente e surpreende-me o olhar; fita-me de cima a baixo, assim como à
pequena garrafa de vinho na mesa à minha frente. Desvia os olhos. Há qualquer coisa
na expressão da boca dele que sugere desagrado. Acha que eu sou desagradável. É
verdade que não sou a rapariga que era dantes. Já não sou apetecível, tornei-me
até de certa forma repelente. Não se trata apenas do peso que ganhei, ou de ter
a cara inchada de toda a bebida e falta de sono; é como se as pessoas conseguissem
ver à primeira vista que caí em desgraça: ler-ma na cara, na forma de me sentar,
na maneira de eu andar. Há umas noites, na semana passada, quando saí do quarto
para ir buscar um copo de água, ouvi a Cathy a falar com o Damien, o namorado dela,
na sala. Fiquei no corredor à escuta. Ela anda muito sozinha, estava a dizer a Cathy.
Estou preocupada com ela. Não ajuda nada, estar assim sempre sozinha. Não conheces
ninguém no trabalho ou na equipa de râguebi?, acrescentou. O Damien perguntou:
que possa estar interessado na Rachel? Desculpa lá, Cath, mas acho que não
conheço ninguém assim tão desesperado.
Quinta-feira, 11 de Julho de 2013
Manhã
Estou a desfazer o penso no meu dedo. Faz comichão,
molhei-o quando estava a lavar a minha chávena de café hoje de manhã; parece peganhento
e sujo, mas estava bem limpo quando acordei. Não quero tirá-lo, porque tenho um
golpe profundo. A Cathy não estava em casa quando eu cheguei, por isso fui até à
loja de bebidas e comprei duas garrafas de vinho. Bebi a primeira e depois pensei
que poderia aproveitar, já que estava sozinha, para fazer um bife com cebola caramelizada,
com uma salada de alface a acompanhar. Uma refeição saborosa e saudável. Cortei
a ponta do dedo a fatiar as cebolas. Devo ter ido à casa de banho limpá-lo, e depois
deitei-me só um bocado e esqueci-me completamente do jantar, porque acordei por
volta das 10 e ouvi a Cathy a falar com o Damien, a dizer que era inacreditável
que eu tivesse sido capaz de deixar aquela confusão. Ela subiu as escadas para ver
como eu estava, bateu suavemente à minha porta e abriu-a ligeiramente. Pôs a cabeça
de lado e perguntou se estava tudo bem. Eu pedi desculpa, sem ter bem a certeza
do quê. Ela disse que não fazia mal, mas perguntou se eu me importaria de ir arrumar
as coisas. Havia sangue na tábua de cortar, a cozinha cheirava a carne crua, o bife
ainda estava em cima da bancada, com um aspecto cinzento. O Damien nem sequer me
cumprimentou, limitou-se a abanar a cabeça quando me viu, e subiu as escadas
para ir ter com a Cathy ao quarto. Depois de se terem ido deitar, lembrei-me de
que não tinha bebido a segunda garrafa e então abri-a. Sentei-me no sofá e fiquei
a ver televisão com o som muito baixo, para eles não ouvirem. Não me consigo lembrar
do que vi, mas a certa altura devo ter-me sentido sozinha, ou animada, ou outra
coisa qualquer, porque me apeteceu falar com alguém. A necessidade de contacto deve
ter sido irresistível, e não havia ninguém a quem eu pudesse ligar além do Tom.
Não há ninguém com quem eu queira falar além do Tom. O registo de chamadas do
telemóvel diz que eu lhe liguei quatro vezes: às 23h02, às 23h12, às 23h54 e às
00h09. A julgar pela duração das chamadas, ter-lhe-ei deixado duas mensagens.
Até pode ter atendido, mas não me lembro de falar com ele. Lembro-me de deixar a
primeira mensagem; acho que só lhe pedi para me ligar de volta. Talvez tenha sido
isso o que eu disse nas duas mensagens, o que não é assim tão mau». In
Paula Hawkins, A Rapariga no Comboio, 2015, tradução de José Leiria, Topseller,
20/20 Editora, 2015, ISBN 978-989-880-054-1.
Cortesia de
Topseller/JDACT