quinta-feira, 3 de novembro de 2016

A Rapariga no Comboio. Paula Hawkins. «Depois de se terem ido deitar, lembrei-me de que não tinha bebido a segunda garrafa e então abri-a. Sentei-me no sofá e fiquei a ver televisão com o som muito baixo»

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«(…) Tenho a camisa desagradavelmente apertada, os botões espremidos contra o peito, com manchas de suor pegajoso debaixo dos braços. Doem-me os olhos e a garganta. Esta tarde não quero que a viagem se arraste; só me apetece chegar a casa, despir-me e enfiar-me no duche, onde ninguém pode olhar para mim. Olho para o homem sentado no lugar à minha frente. Deve ter a minha idade, 30 e poucos anos, com o cabelo preto, já um pouco grisalho de lado. Um ar macilento. Trazia um fato vestido, mas tirou o casaco e poisou-o no banco ao seu lado. Têm um MacBook finíssimo aberto à frente dele. É lento a escrever. Tem um relógio prateado com um mostrador enorme no pulso direito: parece caro, talvez seja um Breitling. Vai roendo o interior das bochechas. Talvez esteja nervoso. Ou só a pensar profundamente. A escrever um e-mail importante para um colega no escritório de Nova lorque, ou a medir bem as palavras para acabar com a namorada. Levanta a cabeça de repente e surpreende-me o olhar; fita-me de cima a baixo, assim como à pequena garrafa de vinho na mesa à minha frente. Desvia os olhos. Há qualquer coisa na expressão da boca dele que sugere desagrado. Acha que eu sou desagradável. É verdade que não sou a rapariga que era dantes. Já não sou apetecível, tornei-me até de certa forma repelente. Não se trata apenas do peso que ganhei, ou de ter a cara inchada de toda a bebida e falta de sono; é como se as pessoas conseguissem ver à primeira vista que caí em desgraça: ler-ma na cara, na forma de me sentar, na maneira de eu andar. Há umas noites, na semana passada, quando saí do quarto para ir buscar um copo de água, ouvi a Cathy a falar com o Damien, o namorado dela, na sala. Fiquei no corredor à escuta. Ela anda muito sozinha, estava a dizer a Cathy. Estou preocupada com ela. Não ajuda nada, estar assim sempre sozinha. Não conheces ninguém no trabalho ou na equipa de râguebi?, acrescentou. O Damien perguntou: que possa estar interessado na Rachel? Desculpa lá, Cath, mas acho que não conheço ninguém assim tão desesperado.
Quinta-feira, 11 de Julho de 2013
Manhã
Estou a desfazer o penso no meu dedo. Faz comichão, molhei-o quando estava a lavar a minha chávena de café hoje de manhã; parece peganhento e sujo, mas estava bem limpo quando acordei. Não quero tirá-lo, porque tenho um golpe profundo. A Cathy não estava em casa quando eu cheguei, por isso fui até à loja de bebidas e comprei duas garrafas de vinho. Bebi a primeira e depois pensei que poderia aproveitar, já que estava sozinha, para fazer um bife com cebola caramelizada, com uma salada de alface a acompanhar. Uma refeição saborosa e saudável. Cortei a ponta do dedo a fatiar as cebolas. Devo ter ido à casa de banho limpá-lo, e depois deitei-me só um bocado e esqueci-me completamente do jantar, porque acordei por volta das 10 e ouvi a Cathy a falar com o Damien, a dizer que era inacreditável que eu tivesse sido capaz de deixar aquela confusão. Ela subiu as escadas para ver como eu estava, bateu suavemente à minha porta e abriu-a ligeiramente. Pôs a cabeça de lado e perguntou se estava tudo bem. Eu pedi desculpa, sem ter bem a certeza do quê. Ela disse que não fazia mal, mas perguntou se eu me importaria de ir arrumar as coisas. Havia sangue na tábua de cortar, a cozinha cheirava a carne crua, o bife ainda estava em cima da bancada, com um aspecto cinzento. O Damien nem sequer me cumprimentou, limitou-se a abanar a cabeça quando me viu, e subiu as escadas para ir ter com a Cathy ao quarto. Depois de se terem ido deitar, lembrei-me de que não tinha bebido a segunda garrafa e então abri-a. Sentei-me no sofá e fiquei a ver televisão com o som muito baixo, para eles não ouvirem. Não me consigo lembrar do que vi, mas a certa altura devo ter-me sentido sozinha, ou animada, ou outra coisa qualquer, porque me apeteceu falar com alguém. A necessidade de contacto deve ter sido irresistível, e não havia ninguém a quem eu pudesse ligar além do Tom. Não há ninguém com quem eu queira falar além do Tom. O registo de chamadas do telemóvel diz que eu lhe liguei quatro vezes: às 23h02, às 23h12, às 23h54 e às 00h09. A julgar pela duração das chamadas, ter-lhe-ei deixado duas mensagens. Até pode ter atendido, mas não me lembro de falar com ele. Lembro-me de deixar a primeira mensagem; acho que só lhe pedi para me ligar de volta. Talvez tenha sido isso o que eu disse nas duas mensagens, o que não é assim tão mau». In Paula Hawkins, A Rapariga no Comboio, 2015, tradução de José Leiria, Topseller, 20/20 Editora, 2015, ISBN 978-989-880-054-1.

Cortesia de Topseller/JDACT